Brasil

Série de reportagens mostra conquistas e derrotas na luta pelo fechamento dos manicômios no Brasil

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postado em 29/05/2009 08:00
A tonalidade azul do uniforme se confunde com a cor das grades e portas de ferro. Fora dos quartos com camas de cimento e banheiros que, mesmo limpos, estão sempre fétidos, alguns correm, outros caminham, há os que engatinham. Muitos berram, com mãos trêmulas e bocas desdentadas. A maioria, porém, apenas vê o tempo passar recostada nas pilastras e paredes envelhecidas do Hospital Especializado Lopes Rodrigues, em Feira de Santana (BA). ;Eu vou voltar para Minas Gerais, quero ir para casa;, diz João*, há 12 anos internado na unidade. Lurdes* se satisfaz com menos. ;Dá uma boneca, uma boneca;, pede insistentemente a mulher, sem documentos, cuja idade presumida é de 25 anos. O destino de ambos provavelmente será igual ao de Mariano*, 82 anos, 64 passados dentro do Hospital São Pedro, em Porto Alegre (RS). Ele, Lurdes e João habitam o continente da loucura, imaginado pelo personagem Bacamarte, no qual vivem hoje 36 mil pessoas. Esse é o número de internos nos manicômios ainda existentes no país, embora o fechamento dessas unidades seja uma orientação da política nacional de saúde mental, instituída pela Lei 10.216, de 2001. Mesmo assim, isso representa um enorme avanço em relação aos 150 mil existentes nos anos 1970. Bem antes disso, há exatos 30 anos, o embrião do movimento conhecido no país como Luta Antimanicomial foi lançado pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, que durante uma visita ao Brasil comparou o sanatório de Barbacena (MG) com campos de concentração nazistas. A denúncia repercutiu internacionalmente e culminou em conquistas inegáveis. Três décadas depois da histórica vinda de Basaglia, porém, o problema é que pelo menos 30% dos atuais pacientes, nas contas do próprio Ministério da Saúde, poderiam ser desospitalizados, mas simplesmente não têm para onde ir. Sobreviventes da época das internações compulsórias, dos eletrochoques banalizados, das medicações desnecessárias, perderam o contato com a família, foram abandonados. Essas e outras histórias serão contadas a partir de hoje, na série ;Cidadania e loucura;, que traça a radiografia do atendimento público na área da saúde mental no Brasil. O Correio cruzou 7.960 mil km para visitar 10 cidades de quatro regiões e mostrar as várias facetas do tratamento recebido pelos doentes mentais brasileiros, sobretudo os pobres. A dura realidade dos manicômios judiciários, o impacto da epidemia do crack na rede de saúde, a fragilidade dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e as vidas reconstruídas nas residências terapêuticas integram, entre outros assuntos, as reportagens sobre o tema, que serão publicadas até a próxima quinta-feira. Iolanda* perdeu o direito de existir socialmente em 1966, quando, aos 15 anos, foi colocada na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, porque sofria de epilepsia. Só há pouco tempo ela tirou o primeiro documento de identidade. Das lembranças do pavilhão 9 do manicômio, que chegou a reunir 5 mil internos na década de 1980, a mais nítida é o quarto-forte. ;Fiquei presa porque eu era agressiva, fazia bagunça. Tinha grade, bicho, era muito ruim;, conta a mulher ; hoje com 58 anos. Sem parentes, lamenta a perda de amigas que morreram dentro da imensa colônia onde ela vive até hoje, de 8 milhões de metros quadrados, mesmo tamanho do Bairro de Copacabana. A negação de direitos que marcou a vida de Iolanda fomentou a mobilização da sociedade civil contra esse modelo segregador de tratamento. O furor social levou à política atual, adotada oficialmente em 2001 com uma lei aprovada no Congresso Nacional. No cerne dessa legislação, está a criação de uma rede substitutiva de cuidados e, simultaneamente, a extinção dos manicômios. Mas, no ritmo atual de fechamento de leitos ; 1,5 mil por ano ;, seriam necessárias duas décadas e meia para zerar as 36 mil vagas hoje distribuídas em 216 hospitais psiquiátricos. Queda de braço O assunto, porém, é polêmico. Sempre que o fechamento de unidades especializadas entra em pauta, surge uma queda de braço entre os grupos pró e contra a reforma psiquiátrica. Mas Pedro Gabriel Delgado, coordenador da saúde mental do Ministério da Saúde, é enfático. ;Nossa hipótese é de que é possível, sim, substituir, integralmente, os hospitais psiquiátricos. Mas a questão de fechar ou não frequentemente cai para uma discussão ideológica. E, na gestão, temos que nos preocupar em garantir o atendimento, o acesso;, diz Delgado. Na avaliação dele, o ritmo de extinção de leitos é o ;possível; para não gerar desassistência. Psiquiatra e doutor em saúde pública, Paulo Amarante critica a lentidão do fechamento de hospitais, bem como da implantação de serviços comunitários. ;Tem que sair do ritmo natural. E isso só se dá de duas formas, com vontade política e destreinando os quadros, todos formados no ambiente hospitalar, asilar;, critica. Para Sérgio Tamai, diretor do departamento de saúde mental da Santa Casa de São Paulo e membro da comissão de acompanhamento da política de assistência psiquiátrica no Brasil da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), nem todos os hospitais devem ser fechados. ;Internação, em qualquer especialidade, é indicada. Existem boas instituições;, diz. Tamai destaca que, na situação atual de uma rede extra-hospitalar frágil, o fechamento leva à desassistência. Em um ponto, porém, todos concordam. O desmonte dos hospitais esbarra, necessariamente, num grande problema social. Não há local para encaminhar pessoas como Mariano, 82 anos. Ele chegou ao Hospital São Pedro (RS) aos 18. Em seu relatório médico, há uma menção no máximo genérica sobre ;agressividade; como motivo de internação, mas nenhum diagnóstico conclusivo de distúrbio mental. O prontuário não assinala, nesses 64 anos de hospital, incidente grave algum. Pelo contrário, o registro aponta Mariano, hoje de cabeça branca e fala debilitada, como calmo, tímido e colaborador. A idade avançada que lhe tirou parte da lucidez parece não ter extraído das mãos enrugadas a habilidade para a pintura. Os traços velozes, curtos e espontâneos renderam a Mariano o apelido de ;Van Gogh do São Pedro; e a participação em muitas exposições. Uma delas, em 1998, com o título A louca lucidez de Van Gogh, fez grande sucesso entre o público. O panfleto da vernissage está guardado até hoje no prontuário médico de Mariano. Natural de Rio Grande, a 300km da capital gaúcha, ele nunca teve notícias de familiares nesses 64 anos de internação. Atualmente, seus dias se resumem a distrair-se nas oficinas de arte promovidas em uma das 10 alas de moradores do hospital, inaugurado em 1903. Gravidez Prova viva de que a letra fria da lei, inibindo internações prolongadas, anda em descompasso com a realidade é Lurdes. A interna que gosta de fazer as unhas e anda com uma boneca debaixo do braço está no Lopes Rodrigues, em Feira de Santana, desde 2002. Foi trazida da rua pela polícia. A equipe de assistência social do hospital já colocou fotos da mulher no jornal local, na esperança de encontrar algum parente. Em vão. Lurdes chegou a engravidar dentro da instituição e teve a criança, que acabou adotada. A falta do bebê talvez explique a fixação por bonecas. ;Dá uma boneca, uma boneca;, ela repete, sem parar. Atualmente, o Lopes Rodrigues tem 240 moradores, muitos dos quais vindos de outras unidades que fecharam leitos. * Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos pacientes Leia o caderno especial Cidadania e Loucura completo na edição impressa do Correio Braziliense desta sexta-feira

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