postado em 02/06/2009 08:19
Os 51 anos passados dentro da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, tiraram de Thereza Sant;anna um sentimento fundamental de qualquer ser humano: querer, desejar algo. Durante todo esse tempo de internação, a roupa que vestia era a mesma de todo mundo, marcada com o nome da instituição. A comida também chegava pronta, decidida por gente que ela nem conhecia. A hora de dormir, o momento de acordar: absolutamente tudo controlado durante praticamente toda a vida. Dois anos atrás, essa história começou a mudar. Theresa deixou de apenas existir, ser mais uma dentro de um grande hospital psiquiátrico, para passar a viver de verdade.
A volta à cidadania se deu em uma residência terapêutica, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Hoje a principal estratégia do governo federal para desinternar pacientes antigos de manicômios, abandonados pela família e sem ter para onde ir, essas casas assistidas estão presentes em apenas nove estados brasileiros. As 2.714 vagas existentes não conseguem atender à demanda de pelos menos 9 mil internos que poderiam se beneficiar do projeto. No lar de Thereza, moram mais três ex-pacientes. A mulher de 73 anos se orgulha de mostrar o próprio quarto para as visitas.
Mais de meia dúzia de bonecas apelidadas com nomes de cantores famosos enfeitam a cama. ;Olha o Martinho da Vila, é o mais bonitinho;, aponta. Às 5h da manhã, diariamente, Thereza vai à padaria. Se está disposta, anda pelo comércio, entra nas lojas. De noite, gosta de ficar conversando com a vizinha na porta de casa. ;Mas quando fica muito tarde, eu entro;, adianta a mulher de 73 anos, que agora só vai dormir se realmente estiver com sono. Apesar de hoje maravilhada com a nova vida, Thereza conta que teve medo de encarar a rua. ;Não queria vir, não. Chorei muito quando saí do hospital. Mas aqui fora é bom demais, agora é que eu vejo;, comemora.
Terrores no passado
As lembranças mais antigas do hospital remetem a cenas de maus-tratos e violência. ;Molhavam os dois aparelhinhos na água e colocavam na nossa cabeça. Dava uma dor tão grande;, fala do eletrochoque, levando os dedos às têmporas. O quarto-forte é outro terror que, vez por outra, vem à cabeça de Thereza. ;Trancavam a gente lá de castigo. Tinha ratazana e muito morcego. Eu ficava apavorada.; Na nova casa, não tem grade nem choque. A residência onde Thereza mora é comum, como qualquer outra. Um cuidador visita o grupo todos os dias, por quatro horas, para checar a medicação e ver se está tudo bem no lar.
;Os problemas são mínimos. Nas 168 desinternações para residências terapêuticas que fizemos até hoje, apenas dois pacientes retornaram por não se adaptarem;, diz Patrícia Albuquerque, coordenadora de desinstitucionalização da Secretaria Municipal de aúde do Rio de Janeiro. Para Jorge Fischer Nunes Filho, o difícil é se imaginar dentro de uma instituição psiquiátrica novamente. Ele passou pelo menos 24 dos seus 36 anos em unidades fechadas. Numa delas, reservada não só a pacientes com distúrbios mentais, mas também a meninos de rua, Fischer teve o olho direito furado. ;Não quero falar do Dom Bosco (local onde ele passou a maior parte da vida), vamos esquecer aquele lugar;, pede, com a testa enrugada.
A feição volta a ficar feliz quando Fischer vai para a frente do computador. Mostra pinturas que fez em um programa de desenho. Devagar, procurando letra por letra no teclado, prova de que aprendeu a escrever.
Foi necessário quase um ano para que a cuidadora conseguisse encontrar um curso de informática que aceitasse Fischer, deficiente mental. Quando conseguiu se matricular nas aulas, logo ficou encantado pela máquina. Toda quarta-feira de manhã enfrenta, na companhia de um cuidador, dois ônibus para chegar ao curso, que ele mesmo paga com o benefício social que recebe por ser incapaz de trabalhar.
Dinheiro
Praticamente todos os moradores de residências terapêuticas ganham um auxílio ; que pode ser do programa De Volta Para Casa ou o Benefício de Prestação Continuada, ambos pagos pelo governo federal, variando de R$ 320 a R$ 465. Com o dinheiro, compram coisas que nunca tiveram. Móveis, perfumes, comida. Muitos viajam. Outros saem para se divertir. Mas até nisso há surpresas. ;Tomei um susto no cinema. De repente, o filme começou. Quando eu ia, ainda tinha uma cortina que abria na frente da tela;, diverte-se Cláudio Liberato dos Santos, 49 anos.
Depois da morte da mãe, que era alcoólatra, Cláudio, natural de Barão de Cocais (MG), foi internado num hospital psiquiátrico de Belo Horizonte, com diagnóstico de ;retardo mental;. Passou depois por uma clínica que acabou fechando em junho do ano passado. Desde então, em uma residência terapêutica da capital mineira, o homem que calcula ter passado 30 anos dentro de manicômios está redescobrindo um mundo bem diferente do que conheceu. Toda semana, recebe visitas da irmã e, volta e meia, sai para passear, em parques e shoppings, com a turma da casa. Mas não descuida do tratamento, condição primordial para habitar uma residência terapêutica.
Em vez da internação, a assistência médica é feita, periodicamente, no centro de saúde. Coordenadora de uma residência terapêutica em Viamão (RS), Maria de Fátima Bueno aponta a inserção social do ex-paciente como ponto fundamental da casa assistida. ;A gente incentiva o usuário a ir aonde a cidade está para buscar os serviços. É mais trabalhoso, é mais complicado que simplesmente internar? Sim. Há os problemas iniciais, mas depois os moradores ganham autonomia, andam com as próprias pernas;, afirma. Para Heloísa Sant;ana , era difícil imaginar a vida sem vigia na porta, comida em utensílios de plástico, horário marcado para tudo, ordens. Ela morou em instituições psiquiátricas desde os 15 anos. Agora, com 69 anos, dois depois de ser desinternada, mostrou para si mesma que pode ser útil.
Faz compras para a residência terapêutica onde vive no Rio de Janeiro, colabora na arrumação da casa e trabalha na cozinha do hospital de onde foi desinternada. ;Saio cedo para moer amendoim. Ajudo a fazer bolo, salgado. É mais um dinheiro que recebo;, anima-se Heloísa, que nasceu em Salvador (BA). Depois que foi internada num hospital no Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio, nunca mais teve notícias da família. ;Não tenho pai nem mãe. Minha família é essa aqui;, diz a mulher.