Mais que injeções, exames, cirurgias ou remédios, o principal fardo que a anemia falciforme despejou nos ombros de Walter Júnior Pereira de Souza foi o de passar sete anos internado. Hoje, aos 11, questionado sobre o que vem à cabeça ao pensar em hospital, a resposta é certeira: ;Visita;, diz o pequeno. O menino, que só comemorou aniversário na própria casa junto com os familiares aos oito anos, não suporta a possibilidade de, um dia, ter de voltar para o leito. Chora ao se lembrar do tempo difícil em cima da cama, quando o problema genético na formação de suas hemácias provocava crises tenebrosas de dor pelo corpo. Mas também sente falta de colegas e funcionários. ;Eu gostava de todo mundo. Até hoje, quando vou lá, as pessoas conversam comigo;, conta Walter.
A mistura de sentimentos, percepções e medo experimentados por meninos e meninas como Walter está descrita no livro O hospital segundo o olhar da criança. Resultado de um trabalho de três anos de duas terapeutas ocupacionais do Hospital das Clínicas de São Paulo, a obra recém-publicada é composta de frases e fotos produzidas por pacientes do Instituto da Criança daquela instituição, com idades entre três e 18 anos. O objetivo, segundo Priscila Bagio, uma das autoras, foi coletar as impressões dos pequenos sobre o ambiente hospitalar e a própria condição ; tudo de forma espontânea, sem questionários formais ou entrevistas. ;Vimos que já havia muitos trabalhos sobre crianças nessa situação, mas sempre com a visão do profissional, dos pais, e nunca delas mesmas;, explica a terapeuta, que trabalhou em parceria com Aide Mitie Kudo.
Um dos principais pontos destacados no trabalho é o bom humor com que a criança, ainda que fragilizada, encara a situação. A identificação clara dos profissionais é outro achado do estudo. ;Eles sabem quem é quem dentro do hospital e têm formas de enxergar as pessoas que cuidam deles. O médico, por exemplo, foi geralmente citado como o ;salva-vidas;. A enfermeira ;sabe igual ao médico, mas de um jeito diferente;;, conta Priscila.
Emmily Fialho, apesar da pouca idade, já tem essa percepção de forma clara. ;A psicóloga é a ;tia;, porque brinca com ela, faz as atividades;, conta Michelle Fialho, mãe da garotinha de três anos que sofre de leucemia.
Criatividade
Na primeira internação de Emilly, por 42 dias, Michelle teve que usar a criatividade. ;Todos os dias eu inventava alguma coisa. Trazia um DVD, um brinquedo;, conta a mãe. Entre as quatro pequenas camas do quarto de Emilly num hospital do DF, a dela é a mais enfeitada. Colcha cor-de-rosa, bichos de pelúcia e muitos lápis de cor. Presidente do departamento científico de cuidados hospitalares da Sociedade Brasileira de Pediatria, Regina Portela ressalta a importância de adequar o ambiente. ;Infelizmente, poucos hospitais fazem isso, mas é fundamental tirar o branco da parede, criar espaços de brincadeiras;, ensina a médica.
Michelle faz o que pode. Até um mural, com as fotos dos familiares, a mãe montou para Emilly, a pedido da menina. Tímida, a garotinha está surpreendendo a todos. ;Ela tinha o cabelo na cintura, era muito apegada a ele. Quando expliquei que a gente teria que cortá-lo, porque estava caindo, ela disse ;tá bom, mamãe;;, lembra Michelle. De bandana na cabeça, Emilly tem consciência do tratamento. Reza todos os dias com a mãe para ;papai do céu; curá-la. Walter, que há quatro anos vive em casa, depois de sete dentro de um hospital, aproveita a liberdade. ;O que eu mais queria fazer era brincar. Agora eu posso;, diz.
Na porta do quarto, o resquício do local que foi sua casa durante mais da metade da vida: ;Não entre sem bater;, escreveu. Entre os hábitos e lições trazidos do hospital, para a mãe, Maria Inês, a mais perceptível é a consciência da importância de dividir tudo com os outros e o zelo pelos brinquedos. ;Ele sempre fala, quando empresta algo para outras crianças: ;só não pode quebrar;. Era o que ouvia lá, de monitores, enfermeiros e psicólogos.;
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