Desconhecido pela maioria da população, o artigo 60 da Lei de Contravenções Penais, que considerava crime leve pedir esmolas, foi extinto no último dia 16. Até a semana passada, a pena para o delito era de 15 dias a três meses de reclusão. Na prática, ninguém era preso. Ainda assim, especialistas ouvidos pelo Correio aprovam a revogação do artigo 60 e consideram um avanço da Justiça não criminalizar as pessoas que pedem dinheiro pelas ruas.
A Lei de Contravenções Penais foi criada há 68 anos e, na avaliação de Cleber Lopes, conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF), a norma era retrógrada. Para Lopes, a mendicância é um problema social que deve ter atenção especial dos governantes, mas sem punição aos pedintes. ;É preciso que o Estado adote políticas públicas capazes de minimizar os efeitos dessa desigualdade social para que se possa reduzir gradativamente o número de pessoas que pedem dinheiro nas ruas;, afirma.
Apesar de o governo federal não ter informações atuais de quantas pessoas se encaixam nesse perfil, levantamento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em 2008 mostra que, em 71 municípios pesquisados, havia 31.922 moradores de rua. Muitos sobreviviam de esmolas, enquanto outros, apesar de não possuir endereço fixo à época, tinham profissão e recebiam algum tipo de benefício do Estado.
O primeiro caso se encaixa na realidade de Roberta (nome fictício), 28 anos, que pede dinheiro em diversos pontos do centro de Brasília para sustentar oito crianças. Acompanhada de duas filhas, uma de apenas 10 meses e outra de oito anos, Roberta conta que pratica a mendicância porque não tem outro meio de sobrevivência. ;Já trabalhei de faxineira no Setor Militar, mas ganhava, no máximo, R$ 30 por dia. Nas ruas, consigo fazer até R$ 45. Já tentei me cadastrar várias vezes para receber o Bolsa Família, mas nunca consegui. A única coisa a fazer é pedir. É melhor do que roubar,; disse. Ela não sabia que era crime pedir dinheiro.
Distrito Federal
Sem precisar o número de pessoas que pedem dinheiro nas ruas do DF, Julia Mandarino, diretora de Proteção Social Especial da Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest), acredita que a população não deve dar esmolas aos pedintes. ;Em hipótese alguma deve-se dar esmolas. Temos cinco abrigos próprios e outros 16 conveniados para cuidar dessas pessoas. Quem quiser ajudar, deve fazer doações a instituições cadastradas;, orienta.
; CONTRAVENÇÕES
Consideradas infrações de menor potencial ofensivo, as contravenções penais constam em lei específica que tipifica crimes de relevância reduzida, com pena máxima de até um ano de reclusão. A lei foi criada em 1941, durante o Estado Novo, período da história republicana brasileira que vai de 1937 a 1945, quando Getúlio Vargas presidiu o Brasil. Depois de aprovada pelo Congresso, a extinção do artigo 60 foi sancionada pelo presidente Lula no último dia 16.
; Palavra de especialista
Direitos humanos
A Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei n; 3.368/1941) previa a mendicância como infração, punível com pena de prisão de 15 dias a três meses (artigo 60). Trata-se de legislação retrógrada de um dos períodos mais duros que o país conheceu e que ostenta uma carga de violação dos direitos humanos sem precedentes. Em boa hora, essa norma legal foi revogada pela nova Lei n; 11.983, de 16 de julho de 2009, extirpando a esdrúxula figura contravencional da mendicância. Em um país onde se convive com inúmeros exemplos de corruptos que sobrevivem à custa de golpes aplicados contra o Estado e em que existem milhões de pessoas passando fome, a tipificação infracional da mendicância soa como uma verdadeira punição àquele que não deu a sorte de ter chances na vida e viu sua dignidade ser violada pelo próprio Estado da forma mais vil. Estado esse que se obrigou a respeitar a dignidade da pessoa ; artigo 1; da Constituição Federal. A mendicância, portanto, não poderia mais subsistir no sistema legislativo brasileiro. A própria Constituição promete ;construir uma sociedade livre, justa e solidária;. Parabéns a essa lei, que veio corrigir equívocos antigos que só se justificavam em razão das classes sociais mais abastadas não suportarem conviver com seus miseráveis.
Zélio Maia da Rocha, advogado e conselheiro da OAB-DF