Por Alana Rizzo, Thiago Herdy e Maria Clara Prates
O comprimido azul era a promessa de sobrevida na luta contra uma doença pulmonar grave. A prótese adiaria, por muitos anos, o último baile. O pino acabaria com as dores na coluna, martírio de quem passava incontáveis horas em pé, na sala de aula. As seis pílulas brancas de todo dia eram a esperança para vencer o câncer de próstata.Os quatro parafusos no pescoço, solução para
retomar aventuras entre trilhas, mares e montanhas. E o contraste de raio-x - tomado para um exame - era só para conferir se a gastrite, adquirida em anos de trabalho com adolescentes ou na rotina exaustiva na manutenção de máquinas, poderia ter melhorado.
[SAIBAMAIS]As histórias acima são de brasileiros que, no lugar da cura, encontraram a dor e, em muitos casos, a própria morte. O Brasil não produz estatísticas que mostrem o número total de pessoas que perderam a vida ou foram enganadas quando tinham esperança de recuperação. Estima-se que, apenas no Rio Grande do Sul, esse número ultrapasse os 7 mil. Em três casos de adulteração de medicamentos identificados pelas autoridades sanitárias nos outros estados brasileiros, foram quatro dezenas de mortos. E o volume de apreensões das falsificações nos sete primeiros meses deste ano contribui para revelar a dimensão do problema: 313 mil quilos de medicamentos foram recolhidos de norte a sul do país, em pequenos e grandes municípios. É um número sete vezes maior do que o registrado em todo o ano passado, quando 45 mil quilos de remédios pirateados acabaram incinerados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A falsificação de medicamentos e de produtos médicos no país transformou-se em problema de saúde pública, com status de crime organizado e cada vez mais infiltrada nas estruturas do Estado. Grupos conseguem, até mesmo, abastecer o Sistema Único de Saúde (SUS) com as drogas e os equipamentos da morte. Ao longo de 68 dias, o Correio/Estado de Minas freqüentou o submundo do crime para mostrar os bastidores da pirataria de remédios e equipamentos. A reportagem - que será publicada em série até a próxima sexta - visitou as fronteiras do Brasil com o Paraguai, a Bolívia e o Uruguai para flagrar a facilidade como o comércio clandestino ocorre. Acompanhou a ligação cada vez mais próxima desse mercado com o narcotráfico e os esquemas de roubo de cargas. Investigou como atuam organizações que chegam a se infiltrar entre médicos para levar os produtos a todos os cantos do país. E foi atrás das prefeituras que compraram medicamentos falsos nos pregões eletrônicos e dos relatos das cirurgias em que foram usados equipamentos de péssima qualidade e sem registro, pagos com dinheiro público.
Criminosos
Mesmo diante desse quadro aterrador, em 18 meses, apenas 104 pessoas foram presas acusadas de envolvimento com os crimes e 80 pontos de venda foram interditados. E mais de seis anos depois dos episódios de falsificação de remédios mais chocantes do país, envolvendo as marcas Androcur e Celobar, a impunidade reinou. O Correio/Estado de Minas apurou que os criminosos não foram devidamente responsabilizados e, em alguns casos, levam uma vida de luxo. Às famílias dos doentes iludidos com a compra dos remédios falsificados, restou apenas a saudade dos que partiram para sempre.
A própria Anvisa admite que "enxuga gelo" com as ações de repressão. A situação não é diferente em relação à Receita, que não consegue interceptar mais de 5% de todo o contrabando que passa pela Ponte da Amizade, em Foz do Iguaçu (PR), na fronteira com o Paraguai, principal responsável pelo abastecimento do mercado de piratas no Brasil. Trata-se de um problema que envolve pelo menos 20% dos medicamentos que circulam pelo mundo, conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS).
O Parque Industrial de Taiwan, instalado no município de Minga Guazú, a apenas 20km de Ciudad del Leste, é apontado pela Anvisa como um dos locais onde são montados equipamentos médicos, como aparelhos de pressão. O letreiro na entrada informa que se trata de uma empresa alimentícia, mas no local, um terreno com 500 metros de frente e um quilômetro de extensão, só existem galpões, sem chaminés, necessárias à indústria de alimentos.