postado em 24/08/2009 08:39
Tapa na cara, empurrões, ameaças e até mortes. Muita gente ferida - no corpo e na alma. O cenário é de guerra nos corredores das grandes emergências e policlínicas do Nordeste. A superlotação sufoca. Em meio a doentes, falta de plantonistas e materiais básicos de socorro, algo mais chega ao limite: a relação médico-paciente.
Nenhum sindicato da região tem estatísticas sobre a violência sofrida pela categoria, mas é cada vez mais comum casos de médicos agredidos e que se agridem, ou pacientes que se sentem prejudicados.
Os estados nordestinos que mais divulgam queixas nesse sentido são Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Bahia, Sergipe e Piauí. Nesse cenário, ao olhar do doente e até mesmo do colega de trabalho, o doutor deixou de ser o provedor da cura e passou a ser o monstro, como mostrará a segunda reportagem sobre as pressões sofridas pelos médicos no ambiente de trabalho.
"Vagabundo"
Pediatra há 21 anos, o piauiense Renato Leal, 49 anos, guarda na memória um dos momentos mais difíceis da profissão, em maio do ano passado, vivido no hospital municipal Monte Castelo, em Teresina (PI). De um lado, Renato estava cansado. Do outro, quatro parentes de uma criança com um corte no rosto esbravejavam, ao entrar no seu consultório. Isso porque eles já tinham passado por um outro hospital, o Dirceu Arcoverde, sem receber o atendimento necessário.
"O avô do menino já entrou no consultório brigando. Estava zangado, falando mal do outro médico, dizendo que a criança não tinha sido atendida no outro hospital porque o vagabundo estava almoçando. Eu simplesmente disse que médico também tinha direito de almoçar e que a Prefeitura de Teresina deveria ter dois profissionais de plantão e não apenas um. Ele foi logo me agredindo e me chamando de vagabundo. Para completar, a tia veio e me deu um tapa na cara que cortou meu nariz", contou Renato, acrescentando que prestou queixa à polícia. O caso foi parar no Ministério Público do Piauí e a moça denunciada por agressão pegou uma pena alternativa.
"Sofremos agressão verbal diariamente, porque atendemos a 80 ou 100 pacientes num plantão de 12 horas. O paciente não vê que a culpa é do gestor. Isso nos entristece, porque as pessoas não estão mais discernindo o bom e o mau profissional. Agora, nunca vi nenhum político levando tapa na cara pelo caos na saúde pública. Conosco, isso está acontecendo direto", afirmou.
Finalmente absolvido
Era início do ano, 2 de janeiro, quando o ginecologista-obstetra Gutemberg Costa Pereira, 57 anos, livrou-se de um peso que já carregava há quase seis anos. Indiciado por crime de lesão corporal, ele foi inocentado naquela data pelo Ministério Público do Maranhão, único estado do Nordeste que tem uma radiografia sobre os tipos de processos criminais movidos contra os médicos - cerca de 50% por falta de condições de trabalho.
Gutemberg passou quase seis anos respondendo ao processo. Tudo porque, em 8 de setembro de 2003, durante um feriadão, em São Luiz, não teve condições de fazer um parto cesariano numa paciente, o que provocou uma lesão cerebral no bebê.
O ginecologista contou em detalhes o caso que lhe rendeu muitas noites de insônia. Ele disse que, além de vários médicos terem faltado ao plantão naquele feriado, não havia equipamento esterilizado para cesariana. Acrescentou que, na hora em que a mãe da vítima chegou para fazer o parto, com dilatação de 8 centímetros, ele tinha de atender a outra paciente mais grave, com risco de rompimento uterino, e que já havia rodado em vários hospitais.
"Tive de fazer a escolha de Sofia e atendi primeiro a mãe com risco de rompimento uterino. Quando eu voltei para socorrer a outra, o bebê dela já estava nascendo e tinha três voltas de cordão no pescoço. Só que eu não podia saber disso, porque essa mãe não tinha feito exame neonatal durante toda gravidez. À noite, infelizmente, o bebê foi levado à UTI apresentando problema cerebral", contou, dizendo que o MP o inocentou porque ele não teve condições de atender a duas pessoas.
Estudo
A história de Gutemberg não é única. Ele é um dos médicos que fez parte de uma pesquisa inédita realizada pela médica e professora de Bioética Deíla Barbosa Lima. Esse estudo é único no Nordeste e mostra o perfil dos processos por erros médicos em andamento, entre os períodos de 2002 e 2007.
Deíla chegou à conclusão que a maioria dos crimes pelos quais os médicos são acusados (cerca de 50%) acontece por falta de condições de trabalho. Ela tem como base 43 dos 46 processos existentes na Promotoria de Justiça Especializada de Defesa da Saúde de São Luiz entre os anos de 2002 e 2007. Todas as ações duraram mais de cinco anos. Uma dor de cabeça para os inocentes.