Ana Braga
postado em 13/09/2009 10:14
O sol ainda está longe de nascer quando o aposentado Antônio Soares de Araújo, de 66 anos, sai de casa, no bairro de Ouro Preto, em Olinda (PE). Ele deixa a cama às 2h, com o céu no breu, para iniciar um ritual que já dura 12 anos: a caminhada pela pista da PE-15, uma das vias mais perigosas da Região Metropolitana do Recife. O roteiro é Olinda-Paulista-Olinda. E Antônio não está sozinho. Cada vez mais, os atletas da madrugada frequentam o silêncio das ruas, parques, praças e calçadões. Eles formam grupos em busca de companhia, sossego e bem-estar. A reportagem seguiu os passos desses madrugadores que, como Antônio, desafiam o escuro para ter um bom dia, enquanto muita gente ainda tenta encontrar no travesseiro uma boa noite.
Fazer exercício físico na madrugada tem as mesmas recomendações e contraindicações das práticas em outros períodos. Os mesmos benefícios e riscos. O cuidado com o sono, por exemplo, e a recuperação do corpo para o esforço são sempre fundamentais à saúde. Se isso não acontece, o tiro pode sair pela culatra. Em vez do exercício físico promover o bem-estar, leva a saúde ao limite. Submete o organismo ao estresse, à perda de massa muscular e à hipertensão, só para citar alguns males.
"Um treinamento noturno ou na madrugada é útil desde que o sono tenha sido satisfatório. Algo às vezes complicado", destaca o cardiologista e professor de medicina Francisco Alves de Farias. A preocupação com o descanso se justifica: a atividade física provoca a excitação do sistema nervoso, o aumento do metabolismo celular, a elevação da frequência cardíaca e aumento do fluxo sanguíneo.
O educador físico e professor universitário Sérgio Cahu reforça que o descanso é fundamental para a recuperação do corpo e para potencializar os benefícios do exercício físico. "Se a pessoa tem o dia agitado, não relaxa, tenta dormir, fica impaciente, levanta com insônia, coloca um tênis e vai caminhar, não está fazendo um bem para ela. Ao contrário, está fazendo mal", afirma Cahu. "É principalmente à noite, mais ainda quando o sistema nervoso está relaxado, que acontece a liberação do hormônio do crescimento. Se não há o descanso, essa função fica comprometida. E a pessoa sente que não relaxou quando levanta e vê que continua sonolenta ou cansada", explica.
Inconvenientes
Exercício sem descanso, sem a recuperação do corpo, tem outros inconvenientes. Na excitação do sistema nervoso, o organismo aumenta a liberação de alguns hormônios. "Geralmente, são hormônios catabólicos, como o cortisol. Em excesso, ele dificulta a síntese de proteínas e, consequentemente, prejudica a massa muscular. Também acontece maior liberação de adrenalina circulante, que, a longo prazo, pode provocar vasoconstrição (contração dos vasos sanguíneos) e hipertensão", cita.
"Independentemente do horário do exercício, a pessoa precisa ter um tempo de descanso. E se ela escolhe um horário como 2h, 3h ou 4h da madrugada, não deve aplicar de um dia para outro. Não deve mudar o hábito radicalmente. É um trabalho gradativo, com programação", destaca o personal trainer Ricardo Costinha. "A pessoa que conhece o próprio corpo sabe combinar exercício físico, trabalho e outras atividades, sem ultrapassar os limites. Tem gente que rende mais na madrugada, mesmo que seja trabalhando ou fazendo caminhada."
Amigos da noite
A reportagem acompanhou a rotina de exercícios de algumas pessoas durante a madrugada. E descobriu que muita gente aderiu às caminhadas noturnas.
3h13
PE-15, Olinda
Nem tênis caro nem monitor cardíaco de última geração. O guarda-chuva é o acessório fundamental da caminhada. É o parceiro inseparável do aposentado Antônio Soares de Araújo. Ele caminha sempre prevenido na PE-15, que liga Olinda e Paulista. Chuva e gripe não o afastam do percurso diário de cerca de oito quilômetros. Uma comadre, vizinha do bairro, às vezes acompanha o passo. "Sou cardíaco. Fiz cirurgia de ponte de safena e tenho um stent (prótese metálica colocada em artérias para normalizar o fluxo sanguíneo). Caminho por causa disso", justifica o aposentado. E por que na madrugada? "Essa hora não tem ninguém na rua. Quando aparece alguém, já passa das 3h30. E o clima fica tão bom... A gente respira folgado." Quem não gosta desse hábito é a esposa do aposentado. "Ela diz que perde o sono esperando eu voltar", conta. Para não perder a hora do exercício, Antônio dorme às 18h30. E não tem medo de andar sozinho na PE-15.
3h18
Avenida Boa Viagem
Relógio de pulso marcando 3h18. Nessa hora, só o som do vento e da água. João Bandeira, 66 anos, Paulo Tavares (foto), 55, e mais dois amigos caminham juntos no calçadão da Avenida Boa Viagem. O percurso de 10 quilômetros é feito a passos apertados, ligeiros. Vão no pique contrário ao da madrugada, quando a praia, o mar e a maioria dos moradores ainda estão dormindo. "Caminhamos juntos para dar proteção um ao outro, já que a essa hora não há policiamento. Também não encontramos sanitários públicos abertos", observa João. A caminhada na madrugada ajuda o quarteto a ganhar fôlego para o dia puxado de trabalho. João é advogado, Paulo trabalha com vendas da indústria de artefatos e os demais amigos também têm suas tarefas cotidianas. "Esse é o único horário que a gente encontra para o exercício, sem prejudicar os demais compromissos. E é melhor fazer nessa hora do que não fazer, né?", argumenta João. O grupo madruga religiosamente de domingo a domingo.
3h55
Parque da Jaqueira
"É um momento que eu preciso e não choca com o meu dia." A enfermeira Cláudia Azevedo, de 49 anos, não tem insônia. Caminha na madrugada, no Parque da Jaqueira, no Recife, porque reserva o resto do dia para outras atividades. "Entro no trabalho às 7h30. Não dá para parar. E fazer exercício mais tarde, depois do trabalho, é complicado, porque já estou cansada", explica Cláudia. "Faz uns 20 anos que venho aqui. Então, conheço todo mundo", comenta. A enfermeira dorme por volta das 21h30 e acorda às 3h, "sem despertador", como faz questão de dizer. Às 3h55, já estava na Jaqueira (cinco minutos antes do parque abrir oficialmente). Deu seis voltas na pista %u2014 seis quilômetros ao todo. "No dia que não venho, fico mal. Quem diz que somos doidos é porque não tem a nossa coragem. Eu faço o que a minha filha de 21 anos não faz", confidencia. Além do exercício, Cláudia também pratica a simpatia. Para cada volta, um sem-número de "oi", "como vai?", "há quanto tempo", e "bom-dia". "Na Jaqueira, já é dia, mesmo sem sol", brinca a enfermeira.
4h
Parque da Jaqueira
"Um pouco de insônia e a necessidade de me exercitar." É por isso que o comerciante Eraldo Carlos, de 42 anos, vai também ao parque, assim como Cláudia, durante a madrugada. O exercício já começa em casa, no bairro de Casa Amarela, de onde sai a pé. São cerca de dois quilômetros até chegar à Jaqueira. Na pista do parque, depois do aquecimento, ele vence mais cinco quilômetros. Metade andando, metade correndo. "Tem noite que acordo com o barulho do caminhão do lixo, por exemplo, e não consigo mais dormir", conta Eraldo, que trabalha 10 horas diariamente. "Quando venho (ao parque), o dia fica mais longo e mais tranquilo. Quando não, parece que o dia fica mais corrido e estressante", comenta.