postado em 29/11/2009 08:19
O papel ainda em branco é o início da cura. Preenchido pelos mais diversos tipos de letras, revela feridas escondidas, profundas. Difíceis de sanar. Juntas, as frases funcionam como uma válvula de escape, tal como uma terapia, com os próprios fantasmas. Os mesmos que um dia, quem sabe, estiveram por trás do uso compulsivo de drogas. Daniel, Maurício e Fábio (nomes fictícios) escrevem até hoje para ficar longe das pedras. São parte de uma geração doente, travestida na pele de gente, em geral, muito jovem, que participa de um tratamento baseado nos 12 passos dos Alcoólicos Anônimos. Com autorização dos autores, tivemos acesso a diários escritos pelos viciados durante o internamento no Recanto Paz, uma comunidade terapêutica em Igarassu, na Região Metropolitana do Recife.;Por que estou aqui?;, escreve um Daniel que tenta banir as drogas da própria existência, internado em uma casa de recuperação de dependentes. ;(;) atos como roubar, tanto dentro de minha casa como na rua, chegando até o ponto de praticar assaltos. Eu estava prejudicando todos ao meu redor;, relatou em um trecho do diário que escreveu na unidade de tratamento.
Daniel escreve para curar as feridas abertas pelas pedras. Conheceu o crack na primeira estadia na cadeia, aos 21 anos, quando foi preso por atirar em uma mulher durante uma tentativa de assalto. Dali nasceu a obssessão pela droga. ;Enquanto não usava, as mãos ficavam trêmulas, suando. É a mesma coisa que se preparar para uma festa. A gente fica ansioso;, compara.
Dos nove anos de consumo compulsivo, quatro aconteceram de forma consecutiva dentro de presídios pernambucanos. Daniel chegou a dever até R$ 300 por semana aos traficantes das cadeias. Ao sair, abriu a própria boca de fumo de crack. ;Certo dia, estava com R$ 200 em casa e senti vontade de usar. Orei, pedi a Deus, mas não foi suficiente. Peguei R$ 20 para usar uma única dose achando que poderia controlar. Depois, voltei para casa e peguei o resto do dinheiro. Só cheguei às 2h da manhã. Menti para minha esposa. Foi questão de tempo para a compulsão crescer como nunca;, escreveu Daniel, lembrando uma das tentativas de escapar do vício e do mundo do crime.
Mas até Daniel, que confessou ter participado do assassinato de três pessoas, chora ao contar a própria vida. ;Queria ter uma história normal, trabalhar, terminar os estudos, ter família, carro. Não conseguia. Não sabia lidar com as frustrações. Usei droga para fugir, me sentir mais seguro;, desabafa.
Concursado no abismo
Funcionário público exemplar, Maurício*, 44, fumava maconha havia vinte anos. Um dia, um namorado lhe apresentou as pedras. De imediato, trocou a substância de preferência, como chamam na comunidade. Viu a vida virar do avesso. O salário equivalente a R$ 4 mil não era suficiente para as dívidas com agiotas e traficantes. Acabava em três dias. Chegava irreconhecível ao serviço, em uma empresa federal, onde conquistou uma vaga aos 18 anos, através de concurso público. ;Fui alertado por um colega. Ele me disse que eu estava com aparência desfigurada e com a roupa fedendo. Passei o dia todo evitando sair da sala e depressivo;, relatou em seu diário.
Um dia desistiu de viver. Quis se jogar na frente de um carro. A salvação veio da gerente, que o aconselhou a seguir para uma igreja. ;Admito que já estava no mais profundo abismo. Me sentindo fracassado e covarde;, escreveu. Certa vez, chegou em casa e encontrou a mãe idosa dormindo, com um terço nas mãos, na cama dele. ;Naquela hora percebi o mal que estava fazendo. Decidi pedir ajuda à família e procurar internamento;, conta. Nos desabafos dentro da comunidade, as dores anteriores ao uso de drogas vieram à tona. Pela primeira vez contou a alguém que foi abusado sexualmente quando tinha 13 anos. ;Vivo desde aquela época angustiado. Isso me tornou confuso psicologicamente.;
Overdose
Fábio*, 37 anos, é funcionário de uma multinacional. Escreve todos os dias para continuar distante do uso das drogas. ;Tive dois princípios de overdose com o uso abusivo de cocaína, crack e álcool, onde cheguei a ver somente escuro e pensei que ia morrer;, escreve. Para ele, colocar os sentimentos em palavras ajuda a libertar, a espantar fantasmas infantis. ;Minha infância até os sete anos foi no interior e desde então me senti muito abandonado pelo meu pai, que só pensava em trabalhar e acreditava que pagando as contas tudo estava certo;, conta no diário.
* Nomes fictícios
Suscetibilidade de vários fatores
Especialista em dependência química, o psiquiatra e psicanalista Marcelo Machado explica que não basta a pessoa ser suscetível à dependência. É necessária também uma série de fatores sociais, culturais, psicológicos para que a pessoa desenvolva o vício. ;Em geral, são pessoas impulsivas, que começaram o uso de drogas cedo. Na realidade, trata-se de uma mistura de fatores. Não significa dizer, por exemplo, que o filho de um dependente vai se comportar do mesmo jeito;, ressalta. Fabrício Selbmann, que fundou a Recanto Paz, diz que os dependentes, em geral, têm desejo sexual desenfreado, necessidade de aceitação, controle do outro, insegurança material. ;Eles também se acham grandiosos, são infantis, hipersensíveis e têm autopiedade;.
Segundo Selbmann, 50% das pessoas internadas na unidade conseguem se livrar do vício. De lá, são encaminhadas para grupos de narcóticos anônimos do estado e orientados a continuar escrevendo. ;Percebemos que, entre os dependentes, um dos pais deles em geral é carrasco e o outro é facilitador. Além disso, são carentes de aceitação na família e buscam isso em outros grupos de pessoas;, destaca. Grupos como o Recanto Paz pregam a abstinência e apostam na religião para afastar o vício. Por isso, nem sempre são bem vistos por médicos que dizem que ao fim do tratamento o interno apenas troca a dependência das drogas pela religiosa.