postado em 30/11/2009 09:06
>>Luiz RibeiroEnviado Especial
Francisco Sá (MG) ; ;Vou confessar uma coisa: por causa do crack, a gente até mata. Nunca matei porque não tive oportunidade, mas se depender de matar para fumar o crack, a gente mata mesmo;. O relato é da adolescente Sônia*, 16 anos, que tenta se livrar do vício. Ela mora em Francisco Sá, município mineiro de 23,4 mil habitantes, a 477 quilômetros de Belo Horizonte. Uma localidade às margens da movimentada BR 251, usada por motoristas que cruzam Minas saindo do Sul/Sudeste rumo ao Nordeste. Está a 42 quilômetros de Montes Claros, cidade-polo do Norte do estado. Lá, a disputa pelo comando do tráfico de drogas é semelhante à que se vê nos morros do Rio de Janeiro.
É nesse cenário do interior do país que a doméstica Idalina*, de 48 anos, enfrenta um pesadelo de mais de uma década na família, provocado pelo crack e por outros entorpecentes. Primeiro, dois de seus sete filhos, os gêmeos Wellington* e José*, tornaram-se usuários quando tinham 12 anos. Seguindo um roteiro quase padrão, experimentaram a maconha, passaram para a cocaína e chegaram ao crack. De usuários, começaram a ;repassar; a droga e acabaram detidos.
A evangélica Idalina conta que, mesmo ;sem poder;, teve que pagar um advogado e inúmeras vezes compareceu à delegacia para resolver problemas dos garotos. Cansada, em 2004 resolveu mudar de cidade. Foi para Jequitaí ; outra pequena cidade do Norte de Minas, de 8,5 mil habitantes. Achou que lá os filhos estariam livres. Mas a sina se repetiu. Wellington ; já com 18 anos ;, envolveu-se novamente com as drogas e passou dez dias na cadeia.
Perdida, Idalina fez o caminho de volta a Francisco Sá com a família. Wellington, hoje com 25 anos, ainda não se livrou do vício. José deixou as drogas e trabalha como lavrador. A aparente recuperação de um dos rapazes, contudo, teve um contraponto triste na descoberta de que a filha adolescente Sônia, 16 anos, viciou-se em crack. O consumo teve início aos 13. A menina tornou-se dependente a ponto de começar a se prostituir para garantir o vício (veja Ponto a ponto). No fim de outubro, precisou ser encaminhada a um centro de recuperação em Curvelo, onde ficou 20 dias. Não se adaptou e voltou.
;Para quem é mãe fica difícil admitir que temos filhos envolvidos nisso, mas não tenho vergonha de dizer que enfrento o problema;, conta a doméstica. Um dos dias mais difíceis, segundo ela, ocorreu quando Sônia, desesperada, lhe pediu ajuda. ;Ela chegou para mim e disse: `Mãe, pelo amor de Deus, me socorre. Estou morrendo`;, descreve Idalina, emocionada.
Zona rural
;Realmente, a questão do crack na cidade está ficando séria. As crianças estão começando a usar com 10 anos de idade;, afirma Paulo Geovane Borges da Silva, presidente do Conselho Tutelar de Francisco Sá. Ele também identifica o problema na zona rural. ;Acho que isso ocorreu porque começaram a transportar alunos da roça para a cidade. Antes, quando as professoras viajavam para dar aula na zona rural e os meninos não saíam do lugar de origem, isso não acontecia;.
[SAIBAMAIS]Segundo Paulo, já se tem conhecimento do crack em três distritos vizinhos: Cana Brava, Catuni e São Geraldo. A reportagem esteve em Cana Brava, região de aproximadamente 200 casas. Lá, o assunto é tabu. O comerciante Geraldo Rodrigues de Souza Neto, dono de uma mercearia, foi um dos poucos que aceitou conversar. ;A pedra vem da cidade e é usada por adolescentes de 13 a 14 anos;, contou.
A presença governamental é deficiente, tanto pela ausência de profissionais capacitados para lidar com o problema quanto pela estrutura capenga. Sobram, assim, iniciativas pessoais, como a do policial militar Eduardo Bispo Arruda. Ele protagoniza um trabalho de ;formiguinha;, tentando impedir o avanço da pedra. Faz palestras e visita escolas como instrutor do Programa Educacional de Resistência às Drogas (Proerd). ;A juventude, curiosa, muitas vezes experimenta o crack por brincadeira e se vicia;, lamenta.
Ponto a ponto
Sônia* tem 16 anos e um triste histórico de degradação física e emocional patrocinado pelo crack. Experimentou a pedra aos 13 anos, mas era íntima da maconha desde os nove. Abandonou a escola na quarta série do ensino fundamental. Viciada, passou a vender o corpo. Engravidou durante um programa aos 15. Perdeu o bebê num aborto espontâneo. Pensou em suicídio algumas vezes. Passou por uma clínica de reabilitação, mas não se adaptou. Tenta, num município sem estrutura profissional no interior de Minas, superar o vício e as crises de abstinência. Corajosa, ela concedeu esta entrevista
Espiral do vício
Conheci a maconha aos nove anos. Com 13, cheguei ao crack. Fiquei noia mesmo. Comecei a me prostituir. Vou confessar uma coisa: por causa do crack, a gente até mata. Nunca matei ninguém porque não tive oportunidade. Mas, se depender de matar para fumar, a gente mata mesmo.
Influência e solidão
Eu via todo mundo fumando e achava bonito. A gente só se dá conta daquilo que faz quando
está no fim. Para entrar nessa vida, a gente acha várias pessoas para influenciar. Para sair,
não tem ninguém.
Morte em vida
A gente passa muita humilhação. Um dia, cheguei em casa e olhei o espelho. Deu vontade de chorar. Aí, falei: ;Mãe, pelo amor de Deus me ajude. Estou morrendo aos poucos e não tem ninguém para me ajudar;. Senti que, se não parasse, a situação iria ficar ainda pior. Hoje, acho que parei. A gente sabe que é difícil. Mas, se Deus quiser, vou parar.
Consumo reincidente
Por R$ 10 eu comprava as pedras. Ninguém me dava. Eu me prostituía para pagar. Já fumei de 10 a 15 pedras num dia. A sensação é uma coisa assim (passando a mão no estômago), que não sei explicar. É prazerosa, mas não presta.
Ressaca e depressão
Já tive vontade de morrer. Tem hora que a depressão é tamanha que você não consegue parar de usar. A gente fica completamente perdida. É uma vontade de parar e ao mesmo um desejo absurdo de fumar. É muita coisa na cabeça da gente. Tem hora que o desejo é de morrer. Acho que não fiz nada comigo por causa da minha mãe. Sei que ela sofre. Mas tem hora que a gente pede a morte.
Sentimento e projeção
Quero sair dessa vida. Para falar a verdade, tenho ódio de pedra de crack. Se cada pessoa tiver consciência e amar a vida, não deve mexer com droga. Isso é uma destruição. A gente perde a vida familiar, a conjugal e a financeira. Isso não é para novo, nem para velho. Não é para ninguém.