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A assustadora escalada do crack

Mesmo com a experiência de duas décadas no trabalho com usuários de drogas, psiquiatra confessa nunca ter visto um avanço tão vertiginoso de um entorpecente

;Não conheço nenhuma criança que use cocaína. Criança é crack. É muito grave. A constatação é da psiquiatra Maria Tereza Aquino. Diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad), da Universidade do Rio de Janeiro (Uerj) há mais de duas décadas, ela está acostumada a lidar com o vício. Ainda mais em uma cidade marcada pela presença ostensiva do tráfico. Mas confessa: do alto de toda a experiência acumulada ao longo da carreira, nunca viu escalada tão rápida no uso de uma droga. ;É como se fosse uma explosão. Se houvesse um vetor, diria que é uma epidemia;, diz. Para ela, foi a permissão do próprio tráfico que possibilitou a explosão da droga.

Os números comprovam. Os usuários de crack que procuram o Nepad para tentar se livrar do vício já representam 60% do total. Em 2005, houve apenas um atendimento pelo uso da droga. Este ano, só no primeiro semestre, foram 120 casos. O mais grave: segundo a especialista, essa é a única droga consumida pelos pequenos. Há pacientes com oito anos. E, diferentemente do que se pensa sobre a cola de sapateiro, o crack não é consumido só por quem mora na rua. ;São crianças escolarizadas, com leis dentro de casa, mas que, devido a um `abandono forçado`, acabam usando crack;. A psiquiatra critica a falta de uma política nacional de combate às drogas. ;Cada um faz o que quer;. E alerta para os danos devastadores que a droga traz não só para a saúde, mas, também, para a sociedade. ;Vamos ter uma geração de pessoas que, daqui a 15 anos, vão estar completamente demenciadas pelo uso do crack;.

Houve um aumento expressivo do uso de crack no Rio de Janeiro?
É um fenômeno. Notamos que houve aumento desde fevereiro de 2008. Nunca tivemos isso com nenhum outro tipo de droga ; nem com cocaína, nem com ecstasy, cogumelo, nada. E não só tivemos aumento no consumo de determinada droga de uma maneira impressionante em apenas um ano e meio, como também houve a redução da idade do consumidor. Antes, estávamos habituados a lidar até com adolescentes. Mas nunca havíamos atendido crianças usuárias de drogas. Para nós é um fenômeno novo e estamos nos acostumando a lidar com isso desde o ano passado. É como se fosse uma explosão. Se houvesse um vetor, diria que é uma epidemia. Para meu espanto, os pacientes dizem que o crack causa uma espécie de choque elétrico. Eles dizem: a gente fica tão vidrado que o melhor da `onda` é sair dela. E voltam a usar para experimentar aquele frisson.

O que pode explicar esse aumento tão repentino?
O que tem sido dito até pelos próprios pacientes é que o tráfico de drogas no Rio de Janeiro era muito organizado e não permitia a entrada do crack porque sabia que iria perder rapidamente os consumidores. O crack enlouquece, mata, provoca problemas de saúde graves e isso chama a atenção das pessoas para a boca de fumo. Então, o tráfico não admitia que se vendesse crack no Rio. A partir do ano passado, talvez por briga de facções, não sabemos ao certo, ele começou a ser comercializado livremente em calçadas, ruas. É muito barato, cada pedra [SAIBAMAIS]custa R$ 1. E começou a haver um uso grande por crianças, não só por meninos de rua, que antes cheiravam cola e agora usam crack e ficam extremamente agressivos, como também por crianças em idade escolar, que compram de colegas e gerentes de boca de fumo que fazem com que a droga circule em algumas escolas. Os atendimentos de crianças e usuários de crack são mais de 50% do total.

Crianças que moram nas ruas são atendidas?
Nós não trabalhamos com meninos de rua. É muito difícil. Eles não têm teto, não têm paredes, não têm leis. Não se acostumam a ter um ambiente privado. Já tentamos uma vez, mas era um sufoco. Os pacientes que atendemos são crianças com famílias, que têm pai, mãe, irmãos e que são usuários de crack. São crianças escolarizadas, com leis dentro de casa, mas que, devido a um `abandono forçado` ; os pais saem para trabalhar e deixam a criança sozinha ; acabam usando crack. Não há uso recreacional. O crack é uma droga muito invasiva, que tem o poder de causar dependência rapidamente. Ninguém usa o crack socialmente. O desespero é tão grande que, quando termina a onda, a pessoa procura outra pedra para sair do abismo em que está mergulhada.

Falta mais atenção das autoridades para o problema das drogas?
Falta uma política nacional. Assim como o Ministério da Saúde se preocupa com os cuidados no verão para que não haja epidemia de dengue, tem que haver uma preocupação sobre como os pais têm que lidar com a questão das drogas na infância para que os filhos mais tarde não se tornem usuários. Se trata uma doença com antibióticos, mas com relação à droga não há nada. Cada um faz o que quer. Uma clínica de orientação religiosa acha que é preciso ler a Bíblia e capinar. Outra, de orientação antropológica, acha que tem que ter uma unidade terapêutica. É uma bagunça. Sinceramente, quando me pedem para internar alguém, fico em pânico. Não sei onde internar. Não há bons locais gratuitos para internação.

Quais os danos que o crack traz para a saúde dos usuários e para a sociedade?
É uma droga que provoca problemas físicos muito graves, principalmente nos pulmões. Como é uma droga fumada, arrebenta os pulmões, leva a expectorações sanguinolentas, a infartos. Vamos ter uma geração de pessoas que, daqui a 15 anos, vão estar completamente demenciadas pelo uso do crack. É uma droga fisicamente perigosa. Psicologicamente, para uma criança, é um dano. Por causa do crack, ela rouba e pode ser explorada sexualmente e engravidar, tudo para conseguir a pedra. Essa menina de 12, 13 anos, vai ter um filho que não vai amar. Possivelmente, foi uma troca por uma pedra e ela vai deixar essa criança numa lixeira porque não foi desejada. Isso traz problemas para a sociedade, para o indivíduo, para as secretarias de saúde, que têm que ter leitos para internar essas pessoas.

"Uma clínica de orientação religiosa acha que é preciso ler a Bíblia e capinar. Outra, de orientação antropológica, acha que tem que ter unidade terapêutica. É uma bagunça. Sinceramente, quando me pedem para internar alguém, fico em pânico. Não há bons locais gratuitos para internação."


"Falta uma política nacional.
Assim como o Ministério da Saúde se preocupa com os cuidados no verão para que não haja epidemia de dengue, tem que haver uma preocupação sobre como os pais têm que lidar com a questão das drogas na infância para que os filhos mais tarde não se tornem usuários."

Ouça áudio da entrevista com Maria Tereza Aquino: