postado em 14/12/2009 09:44
A venda que simboliza um olhar igualitário para todos - ricos, pobres, humildes ou poderosos - há muito perdeu o significado. Nem quando o assunto é a tortura, um crime que, de tão grave, virou tema de convenções internacionais e não prescreve, a Justiça brasileira consegue atuar sem diferenciação. Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) esmiuçou 51 processos que chegaram aos tribunais da capital paulista entre 2000 e 2004, totalizando 203 réus. O resultado é que, entre as ações cujos acusados eram agentes do Estado, houve 18% de condenações. Nos processos com denunciados comuns, sem função pública, esse índice subiu para 50%.
Na avaliação de Maria Gorete Marques de Jesus, pesquisadora responsável pelo estudo que atua no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, é flagrante a diferença no tratamento entre acusados de tortura comuns e os ligados ao Estado. Quando o réu tem relação com o governo, diz, a vítima é colocada em descrédito, como se ela tivesse inventado a denúncia. No caso do processado comum, a coisa se inverte, é o réu quem não tem a confiança do tribunal. Para Luís Fernando Camargo de Barros Vidal, presidente da Associação Juízes para a Democracia, tal constatação pode ser facilmente percebida no dia a dia dos julgamentos. "Há uma tolerância das autoridades em todos os níveis, na polícia, no Ministério Público, no Judiciário, entre advogados, no que diz respeito à violência institucionalizada", lamenta.
Vidal destaca, ainda, a dificuldade que o sistema de segurança pública e de Justiça têm, hoje, de fiscalizar e punir exemplarmente. "Muito por conta dessa mentalidade que persiste, dessa tolerância", reforça. Subsecretário da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), ligada à Presidência da República, Perly Cirpiano lembra que a violência praticada pelo Estado está arraigada no país desde a colonização, passou pela escravidão, continuou no regime militar e persiste até os dias de hoje. "O fato de não ter havido uma punição para os torturadores da ditadura dá a sensação de impunidade aos atuais agentes do Estado. Precisamos cobrar isso", afirma Cipriano, que foi torturado nos anos de chumbo.
Para Cynthia Pinto da Luz, coordenadora de organização do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, só falta vontade política para punir os criminosos que torturam com a credencial do Estado. "Há vista grossa de absolutamente todos os setores em todo o país", diz. A especialista refuta qualquer tipo de explicação para o número baixo de processos que chegam a serem julgados e, posteriormente, quase nunca terminam em condenação. "Não é falta de provas, inconsistência de depoimentos, nada disso. Vemos que há, nas ações, elementos claros de violência, de tortura. Mas as penas, quando existem, são sempre brandas. No máximo, o criminoso é afastado de sua função", critica Cynthia.
Aparência
Ela aponta a existência no Brasil de um discurso de democracia que não passa de "aparência". "As pessoas precisam entender que a democracia fica restringida diante da ocorrência de violações de direitos humanos. Temos uma herança da ditadura que ainda não foi eliminada", afirma. A sociedade, na avaliação de Vidal, acaba aplaudindo e concordando com a violência e tortura institucionalizadas porque não consegue ampliar os conceitos. "É preciso haver uma compreensão de observar e exigir os direitos dos outros. Porque a proteção do outro é também a minha proteção, a imunidade do outro é também a minha imunidade. Amanhã pode ser eu no lugar do hoje condenado, indesejado, execrado", destaca o juiz.
A legislação que tipificou a tortura no Brasil foi criada após um caso de repercussão ocorrida em 1997, na Favela Naval, em Diadema (SP). Policiais foram flagrados por uma câmera agredindo e torturando os moradores. Mesmo assim, ainda é difícil, muitas vezes, provar o crime de tortura.