postado em 20/12/2009 08:23
A morte de um índio da etnia xavante após um acidente na sede da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Brasília, levantou a polêmica em torno da política de assistência da entidade. Carlos Dumhiwi, 67 anos, era chefe de posto do órgão em Nova Xavantina (MT) e, no começo de novembro, viajou mais de 12 horas de ônibus na esperança de ser atendido na capital federal para tratar de problemas da comunidade. Depois de oito dias dormindo na garagem da entidade à espera de uma audiência, ele sofreu uma queda num banheiro da entidade e foi internado às pressas no Hospital de Base. Dumhiwi morreu em 4 de dezembro à espera de uma cirurgia.
O caso de Carlos escancara a falta de uma política eficiente que ofereça hospedagem e alimentação adequadas aos índios em trânsito na capital federal. O velho xavante tinha saúde debilitada e as condições insalubres de acomodação podem ter piorado o seu quadro clínico, avalia seu filho Isaías TsiHorira Dumhiwi. "Ele tinha diabetes e reumatismo. Com a alimentação deficiente e a falta de tratamento adequado não restou muita esperança", lamenta. "Ele e os outros índios só queriam saber o porquê da demora em cumprir a promessa que nos foi feita. Só viemos cobrar e foi assim que fomos recebidos", conclui.
A Funai garante que os índios recebem auxílio financeiro por parte das administrações regionais quando se deslocam de suas terras para Brasília, mas que o pedido tem de ser feito com antecedência. O dinheiro - R$ 40 por dia - serve para a hospedagem em pousadas da cidade e varia de acordo com a região do país. Além do subsídio para hospedagem, eles também têm direito a receber duas marmitas por dia, que retiram na sede da entidade.
O cacique Isaías Prowe rebate: "Dormir embaixo do prédio da Funai não é novidade. Isso existe há uns três, quatro anos. A gente pede na administração regional para vir para cá resolver os problemas e eles dizem que nunca têm dinheiro". Parente do ex-deputado federal Mário Juruna, ele conta ter se acomoda na casa de um primo, que mora na Candangolândia, a 15km da Funai. Caso contrário, afirma que também teria de dormir na rua. "O negócio é arrumar condições próprias e vir acompanhar o que estão fazendo de perto", observa o cacique da aldeia São Mateus, em Campinápolis (MT).
A pedido da Funai, a 6; Vara Federal do Distrito Federal expediu, em 5 de dezembro, um mandado de reintegração de posse ordenando a saída, em 72 horas, dos indígenas hospedados no prédio sob argumento de que "colocavam em risco não somente o patrimônio público com também a integridade dos servidores que ali trabalham". Pressionados, os últimos xavantes que aguardavam uma audiência no órgão desistiram. Um dos filhos de Carlos, que pediu para acompanhar a liberação do corpo do pai, relata que não pôde ficar. Partiram todos em um ônibus disponibilizado pela própria Funai após o cumprimento da decisão judicial.
Em nota, a Funai informou que a decisão judicial não afeta os indígenas que estão em Brasília por motivo de saúde ou para acompanhamento de tratamento médico de algum parente. Mas que a permanência deverá se dar de forma adequada para que eles não fiquem expostos a situações de riscos, acampados na garagem, com evidente perigo para a saúde e integridade física dos adultos, crianças e mulheres. Hoje, o órgão tem cerca de 2.500 funcionários para atender 45 administrações regionais, 664 terras indígenas, além do trabalho burocrático da sede administrativa, em Brasília.
Memória
Problema antigo
Em 2002, a Funai cancelou os contratos que mantinha com pensões que funcionavam sem alvará e condições insalubres. A maioria instaladas na quadras residenciais próximas ao prédio da entidade. Na época eram pagos R$ 25 por dia para instalar os índios. A falta de ventilação, higiene e até água potável nas instalações levou moradores da Asa Sul a fazerem um abaixo-assinado para tentar fechar as pousadas.
Após a morte de um índio durante um incêndio em uma delas a Funai tentou resolver o impasse, construindo o Centro de Convívio e Cultura Orlando Villas Bôas, em Sobradinho no mesmo ano. Mas a sede, que custou o equivalente a R$ 1,3 milhão para atender até 150 indígenas por dia está fechada desde 2003. O local tem 1.776 m2 de área construída num terreno de 40 mil m2 e inclui estacionamento, quadra de futebol, biblioteca, museu com exposição permanente e até espaço para uma horta comunitária. No ano que vem, o espaço será reaberto e servirá de centro de capacitação de funcionários da Funai.
Pedidos de ajuda
Mobilizados contra a iniciativa e com apoio de alguns servidores, líderes xavante retornaram a Brasília após a reintegração de posse da Funai para protestar. Eles levaram o caso ao Congresso Nacional, à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e ao Ministério Público numa tentativa de ver mudanças. "Vamos trabalhar no convencimento de parlamentares ligados à causa indígena, além de organizações ligadas aos direitos humanos para cobrar uma reavaliação da política indigenista, com reestruturação da Funai", sublinha Isaías Prowe.
O chefe de Divisão do Serviço de Atendimento ao Índio em Trânsito da Funai, Francisco de Sousa, rebate as críticas e concorda com a decisão judicial que, segundo ele, tem como objetivo disciplinar a rotina do prédio. "Eles (os índios) acham que a Funai é um balcão. Chegam aqui com as demandas e pensam que têm que resolver de uma hora para a outra. A maioria dos índios não têm agenda marcada e, por isso, vêm sem qualquer organização. Não há condições de abrigar gente aqui sem necessidade", afirma.
A indigenista Áurea Lúcia afirma que o descaso com o tratamento dos índios que chegam a Brasília para tratar das demandas não é novidade. Ex-chefe de gabinete na gestão do então presidente Eduardo Almeida, em 2003, ela critica a forma que o órgão lida com as comunidades indígenas. "Nota-se como vem sendo tratada questão indígena pela representação que temos aqui: um prédio caindo aos pedaços, que recebe o seu público de qualquer jeito, numa garagem, e acredita que está fazendo o que prega os direitos humanos", afirma.