Brasil

Garis relatam o preconceito sofrido nas ruas devido à profissão; Boris Casoy é processado por ter ofendido a classe

postado em 11/01/2010 08:10
Francisca limpa a Praça dos Três Poderes e reclama de não ser vista pelos visitantes: Do laranja ao abóbora, passando por tons de amarelo, o uniforme passa longe da discrição. José Rosa Rocha tem quatro conjuntos de calça e blusa, além de um boné na mesma cor berrante. Mesmo assim, é raro receber um bom-dia na rua, local onde permanece parte da manhã e a tarde inteira. No caso de Francisca Maria de Sousa, a interação se dá com os pombos da Praça dos Três Poderes, local que ela zela como se a própria casa fosse. Mãe de quatro filhos, a mulher tenta explicar como se sente no meio dos homens engravatados e dos turistas que passam por ela diariamente sem olhar em seu rosto. ;Parece que sou uma estátua, sabe?;, indaga. Como se fosse invisível? ;Invisível mesmo. Muito invisível;, responde em tom sério, depois de pensar por alguns segundos. Francisca e José fazem parte de um contingente de 370 mil trabalhadores que, com vassouras, pás, carrinhos, sacos e espetos, entre outros instrumentos, recolhem 135 mil toneladas de lixo produzido pela população brasileira todos os dias na zona urbana. Apesar da importância evidente do serviço prestado pelos garis, eles padecem de um problema que virou até linha de estudo acadêmico: a invisibilidade social. Cleide Sousa, doutoranda do laboratório de psicologia ambiental da Universidade de Brasília, tenta esclarecer o fenômeno. ;A teoria da invisibilidade social parte do pressuposto de que alguns profissionais, como os garis, garçons e empregados domésticos, que são colocados em posição de subalternidade, passam a ser vistos como pessoas inferiores, mesmo diante da contribuição que trazem;, diz. Não bastasse serem ignorados diariamente nas ruas, há 10 dias os garis se sentiram humilhados, quando o jornalista Boris Casoy, âncora da TV Bandeirantes, certo de que o áudio do estúdio estava fechado, fez comentário sobre dois varredores de rua que apareciam na tela desejando um bom ano-novo aos telespectadores: ;Dois lixeiros desejando felicidades, do alto de suas vassouras, dois lixeiros, o mais baixo da escala do trabalho;, disse. A afirmação repercutiu em todo o país, levando o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Prestação de Serviços e Asseio e Conservação e Limpeza de São Paulo (Siemaco), com Francisco Gabriel da Silva e José Domingos de Melo, os dois garis ofendidos, a ajuizar três ações contra a emissora e o apresentador. No Distrito Federal, o caso também indignou a categoria. ;Fico admirado que uma pessoa que entra numa faculdade e completa os estudos fale uma bobagem daquelas;, diz José Carlos Machado, mais conhecido como Foca. Aos 63 anos, Foca não reclama das oito horas de labuta no Setor Hoteleiro Sul. Exibe com orgulho o local. ;Quando acabo o trabalho e olho para trás, está a coisa mais linda;, aponta. Mas fica furioso ao se lembrar do mais recente preconceito que sofreu em um restaurante do Setor Comercial Sul. ;Estava vendo a televisão do lado de fora, nem entrei, mas o dono me mandou sair de lá. Fiquei com vontade de procurar a Justiça;, afirma o gari. Colega de Foca, Otacílio de Sousa fica arretado mesmo é com os gestos das pessoas que passam. ;Tem gente que abana a venta assim quando a gente chega perto, como se a gente fosse o lixo;, diz o varredor de 57 anos. Cumprimentos como um simples bom-dia ou boa-tarde fazem Manuel Messias Ribeiro da Silva se assustar. ;É estranho quando alguém fala com a gente, a não ser que seja para perguntar um endereço;, afirma o trabalhador de 38 anos. Moradora de Ceilândia e varredora da Praça dos Três Poderes, Francisca prefere mesmo a companhia dos pombos. ;Dou comida para os bichinhos, brinco com eles;, conta. Muitas vezes, diz a gari de 41 anos, é melhor nem ser vista. ;Teve um dia que uma criança veio vindo para o meu lado, aí a mãe gritou: não, filha, é lixo. Eu olhei para ela e disse: lixo é você, porque é você que joga lixo no chão;, lembra Francisca. De acordo com o sindicato de São Paulo, 80% dos trabalhadores na limpeza das ruas são homens. A faixa etária mais comum é a dos 30 anos para cima. O salário médio gira em torno de R$ 850. Mas isso em termos nacionais e dependendo do tipo de contrato ; os concursados tendem a receber mais, já os terceirizados costumam ganhar valor um pouco superior ao salário mínimo. De acordo com Cleide, da UnB, o estigma associado aos garis (1)tem fundo histórico. ;O lixo sempre foi um problema das sociedades, cidades inteiras tiveram de se mudar por conta do lixo na antiguidade. E quem sempre teve a atribuição de mexer no lixo? Prisioneiros, escravos, pessoas tachadas de vagabundas;, explica a psicóloga. O consumismo desenfreado dos dias atuais, segundo ela, também está associado à invisibilidade social que acomete os garis. ;Na medida em que lixo é o resultado do descarte daquilo que eu não quero mais, do que não serve mais para mim, inferiorizo também quem o manipula. Sem contar que em geral os trabalhadores são nordestinos, afrodescendentes, pouco escolarizados, ou seja, pessoas socialmente desfavorecidas.; Um batalhão de 4,5 mil homens e mulheres ; incluídos os responsáveis por podas de árvores ; trabalha diariamente para deixar as ruas do Distrito Federal limpas. Esses homens recolhem 850kg de lixo por ano de cada habitante, em média 27,7kg por dia, segundo estatísticas do Serviço de Limpeza Urbana (SLU). E o volume cresce exponencialmente. Para se ter uma ideia, em 2007, a coleta atingiu 1,5 tonelada, subindo para 2,1 toneladas em 2008, um acréscimo de 43%. Pelo levantamento do SLU, o aumento ocorreu apenas na coleta de rua, enquanto que o recolhimento domiciliar teve poucas alterações. Em 2007 foram 643,9kg. No ano seguinte, o acréscimo foi de pouco mais de 50kg. 1 - Por que gari? A palavra gari tem origem no nome de Aleixo Gary. Em 1876, o francês assinou com a Corte brasileira o primeiro contrato de limpeza urbana no país. Sua missão era cuidar da limpeza das praias e remover o lixo da cidade, levando-o para a Ilha de Sapucaia, no bairro chamado Caju. Depois de tentar monopolizar outras atividades de asseio sem sucesso, pois o governo vetou a ideia, Gary ainda continuou a trabalhar com seus funcionários, passando posteriormente a ;empresa; a um parente. Em 1892, o governo extinguiu o contrato, pagando 232.238 réis pela companhia de limpeza. A atuação desse empresário foi tão forte que os trabalhadores, nessa época, já eram chamados de garis. <--
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--> Trabalho inferior? <--

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--> <-- --> Poucos dias de paralisação são o bastante para a população se dar conta do quanto o trabalho dos garis é imprescindível. Lembre-se de algumas greves: São Gonçalo (RJ), dezembro de 2008 Uma greve de garis que, em algumas ruas, durou mais de 15 dias, foi o bastante para acumular mais de 800 toneladas de lixo na cidade da região metropolitana do Rio. Mau cheiro, ratos, moscas se acumularam em meio à sujeira. Distrito Federal (DF), junho de 2006 Menos de uma semana em greve resultou em 6 mil toneladas de lixo espalhadas pelo DF. Nas cidades com captação precária de esgoto, a situação ficou ainda pior. A sujeira nas ruas associada a canais de resíduos líquidos a céu aberto colocou em risco a saúde da população. Fortaleza (CE), dezembro de 2004 Por nove dias, a paralisação deixou a cidade tomada por lixo. Bueiros entupidos, esgotos transbordando e muita sujeira pelas calçadas, inclusive em frente ao comércio. A greve levou o caos a um dos principais destinos turísticos no Brasil. <--
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--> O lixo da sociedade e quem cuida dele <--

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  • 135 mil toneladas de lixo são recolhidas por dia, entre resíduos domiciliares e públicos no Brasil.
  • 370 mil pessoas atuam nessa atividade, das quais 20% em postos de trabalho temporários.
  • 2,6kg de lixo é a coleta média de um gari por dia.
  • 1,3km é a distância aproximada que um varredor de rua percorre por dia.
  • 43% é o quanto aumentou o lixo recolhido no DF em 2008 (2,1 toneladas) em relação a 2007 (1,5 tonelada).
  • 4,5 mil homens e mulheres limpam as ruas do DF diariamente. Fonte: Serviço de Limpeza Urbana do Distrito Federal e Ministério das Cidades.
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    --> Famosos e heróis <--

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    --> <-- --> Garis foram protagonistas de histórias marcantes e também se notabilizaram pela personalidade: Bebê salvo pelas mãos de um gari Algo movimentando-se dentro de uma caixa de papelão atiçou a curiosidade de José Euclides de Jesus Macedo. Quando começou a retirar os panos que cobriam o volume na caixa, um choro. Gari há sete anos nas ruas de Salvador (BA), o homem só se deu conta do que se tratava depois de ver a perninha do bebê. ;Sabia que tinha algo vivo ali, mas não pensei que iria achar uma criança;, disse Macedo, 48 anos. Depois de chamar a polícia para garantir que o bebê fosse levado ao hospital, o orgulho. ;Agora, eu me sinto um pouco como um herói, porque salvei uma vida;, afirmou depois do episódio, em novembro passado. No quesito ;Sorriso;, a nota é 10 Renato Luiz Conceição é uma das atrações do carnaval mais famoso do planeta. No fim do desfile de cada escola do Rio de Janeiro, o homem vestido de uniforme abóbora passa pela avenida com sua vassoura na mão e o samba no pé. O sorrisão, exibido publicamente desde 1997, entrou para a galeria das imagens clássicas do carnaval e foi de onde surgiu o apelido. Graças à fama, Renato Sorriso já conheceu a Europa, em shows ao lado de Elza Soares, Jair Rodrigues e Alaíde Costa, participou da novela América, de Gloria Perez, e atuou em comerciais ao lado de Gisele Bündchen e Zeca Pagodinho. De limpador de rua a autoridade Até hoje, ele não tem vergonha da profissão original nem da forma como chegou ao poder. Seu nome verdadeiro ninguém sabe, mas é conhecido por seu apelido político: Gari Negrojobs. Vereador eleito na legislatura passada em Goiânia, Negrojobs era gari e ganhava menos de R$ 500 na prefeitura. Para fazer sua campanha, tirou um empréstimo consignado de R$ 4 mil e desfilava com um carro velho ornamentado. Elegeu-se por um partido pequeno, o PSL. <--
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