Os adeptos que usam o santo-daime ou ayahuasca (bebida alucinógena) em cerimônias religiosas comemoraram a decisão do governo brasileiro em restringir o uso religioso do chá apenas a cultos e manifestações espirituais. A resolução foi publicada no Diário Oficial da União do último dia 26 e veta o comércio e propaganda do produto, além de coibir o consumo em eventos turísticos.
;A medida vai evitar a banalização do que é considerado sagrado pela nossa comunidade;, afirma um dos integrantes da Igreja Céu do Planalto, Manuel Poppe, ao mencionar os anúncios de venda do chá pela internet. Ele integra um grupo de 150 adeptos da seita que prega como princípios básicos a busca do autoconhecimento e a interligação com Deus por meio dos seres vivos. Em meio ao verde que cerca a igreja, o grupo mantém o cultivo das duas plantas da Floresta Amazônica que são a base do chá: o cipó (Banisteriopsis caapi) e a Chacrona (Psychotria viridis). É de lá que eles tiram cerca de mil litros para os rituais sagrados do ano todo.
Estima-se que no Brasil existam cerca de 3 mil usuários do chá alucinógeno com finalidade religiosa. Em Brasília, esse número pode chegar a 500, segundo Poppe, mas não há estimativa precisa. Vestido de camisa branca, calça e gravata azuis ; traje especial para dias de ritual ; ele confessou que o uso do chá ainda é muito malvisto pelas pessoas que desconhecem o seu verdadeiro uso. ;As pessoas veem no chá uma coisa muitas vezes maléfica só porque traz alucinações, mas os adeptos não se utilizam da bebida para outra finalidade que não seja para facilitar a meditação e a busca do sagrado;, completa.
É o caso de Marília (nome fictício), 28 anos. Ela buscou o santo-daime após passar por várias experiências religiosas, mas ainda teme o preconceito. A estudante é adepta da bebida há três anos e diz encontrar a paz todas as vezes que se prepara para o ritual. ;A experiência é única, é como se você se desconectasse da terra para assumir uma esfera superior, em busca de inspiração, expansão da mente;, conta.
A sensação de transe também é sentida por Davi (nome fictício), de 32 anos. Ele conheceu o chá quando tinha 18 anos, pelas mãos de um xamã (liderança espiritual), no interior do Amazonas. ;Passei muito mal na primeira vez que tive contato, com náuseas e tontura, mas a sensação de tranquilidade e de alívio é muito compensatória depois de tudo;, diz. Hoje, ele é um dos praticantes da religião.
O professor Juliano da Rede, 29 anos, que toma o daime há 11 anos, discorda da restrição do uso, apesar de achar que deve ser feito por pessoas que têm algum preparo psicológico. ;As plantas medicinais estão há milênios na natureza. No momento em que se limita essa necessidade, impede-se que uma dádiva divina seja acessada por pessoas mais esclarecidas e sem vínculos religiosos;, critica.
A resolução do governo sugere também que as entidades façam uma triagem das pessoas que pretendem ingerir o chá pela primeira vez, além de vetar o uso por aqueles que têm problemas com álcool, transtornos mentais e sejam usuários de outras drogas. Manuel Poppe adianta que as seitas mais sérias já adotam esse tipo de recomendação. ;O uso da substância sempre foi responsável e com objetivo exclusivo de fazer a conexão com os seres espirituais;, afirma.
Patrimônio cultural
A ayahuasca ou santo-daime é de origem inca e comumente utilizada por indígenas da Região Norte do Brasil. Na década de 70, o uso do chá se expandiu pela América do Sul, onde foram criados diversos movimentos religiosos baseados na consagração da droga. Essa é a segunda vez que o governo impõe regras para o consumo do alucinógeno. A bebida chegou a ser proibida na década de 80 por conta de denúncias do mau uso, mas, logo depois, liberada mediante a comprovação de estudos científicos sobre a importância do composto para as cerimônias religiosas.
Em 2008, o então ministro da Cultura, Gilberto Gil, encaminhou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) um processo para transformar o uso do chá em patrimônio da cultura brasileira. A proposta teve respaldo nas entidades doutrinárias ligadas ao alucinógeno. ;Espero que nós possamos celebrar em breve o registro do ayahuasca como patrimônio cultural da nação brasileira. Nesse caso específico, acrescenta-se o afeto em relação à outra dimensão importantíssima para a vida, que é a natureza;, disse o ministro à época.
A religião no mundo
Conhecida também como a doutrina da floresta, o santo-daime vem ganhando cada vez mais adeptos Brasil afora. ;A expansão da religião deixa evidente a importância dessa doutrina para as pessoas porque fala de cura, de Deus e de busca interior;, destaca o antropólogo e seguidor, Fernando La Rocque. Autor de uma tese de mestrado sobre os benefícios terapêuticos e espirituais do chá, La Rocque foi um dos pioneiros na difusão da doutrina no país. Segundo o antropólogo, o crescimento de adeptos nos países ajuda a pressionar por uma legislação da religião.
A doutrina do santo-daime expandiu-se na Europa durante a década de 90 e o primeiro país a fazer a legalização foi a Holanda, em 2001.Hoje, há quatro núcleos da igreja do santo daime no país. ;Além deles, já temos legalização nos Estados Unidos, Holanda e Canadá. Outros processos estão em andamento na Espanha, Alemanha e na Itália;, comemora.
Apesar do avanço com a restrição do chá para uso religioso, o antropólogo acredita que o governo brasileiro ainda deixa a desejar. Ele afirma que a falta de regras para liberar a exportação do produto para os países onde já existe legalização pode atrapalhar o desenvolvimento da doutrina. ;Estamos em constante debate com o Conad na busca de uma solução para que a religião seja desenvolvida da melhor forma. Sabemos que é um processo complexo porque envolve as áreas de relações exteriores, de exportação, assim como de vigilância sanitária, mas a briga é legítima e queremos avançar;, conclui.
A falta de legislação para transportar o santo-daime pelos países da Europa já foi responsável por inúmeras prisões. Em 2009, 52 pessoas foram detidas na Itália e na França acusadas de tráfico. ;O grau de desiformação também é grande em relação à doutrina. As pessoas se arriscam sob a condição de serem presas por carregarem um produto sagrado de baixíssimo teor de substância alucinógena. Se houvesse mais divulgação por parte dos governos, não precisaríamos ver cenas como essas;, conclui Fernando La Rocque. (DS)