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Rapaz de Araxá (MG) com distrofia muscular progressiva recebe cadeira especial depois de quase 2 anos

Portador de uma doença que o impede de andar, Yudiro teve a história contada no Correio há 22 meses. No último fim de semana, a cadeira de rodas especial, que veio dos EUA e trará mais liberdade ao rapaz, encontrou seu dono, e sua trajetória chegou a um final feliz

postado em 09/02/2010 07:00
Marcelo Abreu
Enviado Especial



Portador de uma doença que o impede de andar, Yudiro teve a história contada no Correio há 22 meses. No último fim de semana, a cadeira de rodas especial, que veio dos EUA e trará mais liberdade ao rapaz, encontrou seu dono, e sua trajetória chegou a um final felizAraxá ; Foram 22 meses de uma longa espera. Às 18h30 de sábado, aquele homem, com cinto de segurança amarrado à barriga e pilotando a cadeira de rodas elétrica e toda informatizada, chegou ao caixa 6 do supermercado lotado. O atendente, ao perceber o homem que se aproximava, chorou como criança, debruçado sobre o leitor digital. O homem se desamarrou do cinto, levantou-se e andou como aquele rapaz nunca mais fará. Também em lágrimas, disse, com a voz que trêmula: ;Eu não te prometi que ia trazer?;. E repetiu: ;Eu prometi;. O caixa do supermercado chorou mais ainda.

Todos os outros funcionários da loja, que já sabiam que aquele homem entraria ali assim, choraram. Os clientes, pegos de surpresa, largaram suas compras, entulharam seus carrinhos pelos corredores e assistiram à cena. Tudo parou. De repente, homens e mulheres limpando os olhos marejados. Sucederam-se aplausos. E depois um silêncio paralisante. Gente limpando olhos em mangas de camisa. Cena de filme? Não. Mais real do que se possa imaginar.

E essa história começou em abril de 2008. Numa quarta-feira daquele ano, o Correio e O Estado de Minas contaram com exclusividade o drama de Yudiro Bitencourt, rapaz da mineira Araxá (620km de Brasília) que luta contra uma grave distrofia muscular progressiva (DMP) ; doença de origem genética, cuja característica principal é o enfraquecimento e, posteriormente, a atrofia progressiva dos músculos. Dia a dia, a doença leva o paciente à incapacidade total e à morte, quase sempre por complicações cardiorrespiratórias.

Yudiro nasceu em São Paulo. Só começou a andar aos 2 anos. E ainda assim meio esquisito: na ponta dos pés. E assim cresceu. ;Meus amigos diziam que eu seria bailarino;, conta. O pai nunca o assumiu. Aos 15 anos, enquanto trabalhava como office-boy, depois de carregar caixas de encomendas, sentiu uma dor tão grande na coluna que caiu e desmaiou. Pensou que fosse cansaço. Aos 17, tentou se alistar no Exército. Dispensaram-no por falta de equilíbrio.

No mesmo ano, ele, mãe e dois meios irmãos mudaram-se para Araxá. A mãe queria uma vida mais tranquila. Na cidade mineira, o adolescente virou vendedor de picolé nos pontos turísticos da terra de Beja. Aos 19 anos, as forças cessaram. Parou de estudar (cursou até a 8; série). Começou a se arrastar pela casa. Machucava-se todo. Parou de trabalhar. Uma consulta no posto de saúde do município. Recomendaram-no que fosse a Uberaba. Lá, baterias de exames. E o laudo: DMP. Aos 27 anos, pernas e braços nunca mais lhe obedeceram. Parou de andar definitivamente.

Gilvan (de branco) e representantes do Rotary se encontram com Yudiro: a ação só foi possível com a solidariedade de todosYudiro chorou choro de desespero e medo. Os amigos se afastaram. Sem dinheiro para comprar uma cadeira de rodas, a mais simples, com ajuda do irmão, improvisou uma artesanal, feita com sobras de ferros e pneus de bicicleta e até de patins. Com 1,86m e 58kg, a cadeira não aguentou por muito tempo seu peso e tamanho. Partiu-se.

Vieram depressão e solidão. Precisou de ajuda de uma psicóloga (da prefeitura), que lhe disse que a vida ainda valia a pena. Incentivou-o a acessar a internet, para ler histórias parecidas com a dele. Com ajuda da família e dos poucos amigos, comprou um computador caindo aos pedaços. Ligou-o à internet. E conheceu o mundo, em cima de sua cadeira improvisada. Começou a frequentar, três vezes por semana, o Centro de Fisioterapia de Araxá.

Com o mundo
Um dia, fuçando coisas que o levassem a compreender seu problema, chegou a um site que falava sobre células-tronco (www.celula-tronco.com). Leu e depois contou o seu drama. Pedia desesperadamente ajuda para ter uma cadeira de rodas. O depoimento foi publicado no site. Muito, muito longe de Araxá, um homem de cabelos e barba brancas acessou o mesmo site. E sentiu a dor daquele rapaz. Chorou. De Bellflower, arredores de Los Angeles (Califórnia), fez contato com a prefeitura da cidade mineira.

Ouviu, pela primeira vez, a voz do rapaz que pedia ajuda. Escutou seu drama. E lhe contou que sabia exatamente sua dor. O filho dele, Patrick, então com 26 anos, tinha a mesma doença. Gilvan Pinheiro jurou ao rapaz de Araxá que o ajudaria. Faria qualquer coisa, moveria céus e terra. A família ; pai, mãe e dois filhos ; mora nos Estados Unidos há 23 anos. Mudaram-se para lá para que Patrick, cuja DMP está num estágio mais avançado (ele mexe apenas o pescoço e usa traqueostomia), tivesse mais recursos. Lá, todo o tratamento do filho é custeado pelo Estado. Da medicação à cadeira informatizada, que custa U$ 25 mil (cerca de R$ 50 mil) e é trocada a cada cinco anos.

Gilvan, carioca criado em Minas Gerais, ex-comissário de bordo da Varig, chegou aos EUA em 1988. Deixou o Brasil para que Patrick pudesse viver mais. Lá, imigrante, foi entregador de pizza e dono de restaurante. Com a maior crise econômica que o país viveu nos últimos anos, para sobreviver, virou caminhoneiro. Agora, é motorista de limousine para americanos trilhardários. Perdeu a casa hipotecada, mudou-se para uma menor, em Bellflower mesmo. Viveu dramas muito pessoais com a família, mas ainda assim jurou àquele rapaz de Araxá que nada impediria de levar a cadeira que o filho não mais usava.

Uma só luta
Há 22 meses, a história de ambos ganhou as páginas do Correio e do Estado de Minas. Logo uma corrente de solidariedade se formou no país inteiro. A vontade de ajudar era muita, mas os empecilhos, maiores, sobretudo burocráticos, em decorrência da entrada da cadeira americana no Brasil. Como trazê-la? Gilvan fez contatos com todos que porventura poderiam ajudá-lo. O site da Célula-Tronco, que é de Brasília, também entrou na mesma luta. Antes, para amenizar o sofrimento de Yudiro, Gilvan lhe conseguiu, por meio de um amigo de Belo Horizonte, uma cadeira manual.

Ao mesmo tempo, depois da publicação da reportagem, Yudiro recebeu a primeira ajuda digna desde que parou de andar. Virou caixa da maior rede de supermercado da cidade, o Barbosão. Antônio Barbosa, 49 anos, o dono do grupo, contratou-o. ;Ele é um exemplo de superação. Um dos melhores funcionários. Nunca errou no caixa. Tem cliente que só quer passar no caixa dele;, elogia.

Uma van da prefeitura, quando não está quebrada, o leva à tarde ao emprego, das 16h às 22h. Quando quebra, um carro do supermercado o pega na casa humilde. No ano passado, Yudiro quebrou a perna. Ficou seis meses afastado. Barbosa não o deixou se licenciar pelo INSS. Bancou o salário integral.

Mas a luta continuava. A cadeira de rodas informatizada, a que de fato precisa para lhe dar maior independência (já que a doença é progressiva), ainda não havia chegado. A direção do site Célula-Tronco levou o drama de Yudiro a uma reunião do Rotary Club Brasília Lago Sul, que prontamente entrou na história. Com o lema ;dar de si antes de pensar em si;, a entidade promove diversas ações para atender comunidades carentes. Topou o desafio. João Roberto Amaral, presidente do Club Brasília, e um dos seus dirigentes, Cícero Ceccatto, arregaçaram as mangas e partiram para a luta.

Telefonemas para Gilvan, negociações, expectativa. Começou a via crucis. A cadeira, que pesa cerca de 200kg, partiu de Los Angeles para Washington em caminhão. De Washington seguiu para o Rio de Janeiro, em navio. Do Rio para Brasília, novamente em caminhão. E, finalmente, de Brasília a Araxá, agora de caminhonete, na última sexta-feira.

Konrad, o filho mais novo de Gilvan, que trabalha numa empresa aérea, conseguiu uma passagem para o pai. O Rotary o levou de Brasília a Araxá e custeou a estada dele na cidade. ;Sentimos compaixão com a história do Yudiro;, disse Ceccato. ;Ajudar é um sentimento de gratidão, é o que nos move;, continua Amaral. O sonho virou realidade.

Como menino
Tarde quente de sábado, 6 de fevereiro de 2010. Seria mais um dia de trabalho na vida de Yudiro. Não foi. De repente, um homem entra pilotando a cadeira com a qual sonhou desde que parou de andar para sempre. ;Eu trouxe pelo meu filho. Sou as pernas e os braços dele;, empapuçou-se em lágrimas o pai. Yudiro foi posto na cadeira. Ouviu de Gilvan os procedimentos básicos. Aos 31 anos, parecia menino que começa a engatinhar. E confessou: ;Eu sonhava com ela (a cadeira) todos os dias. Aí, eu acordava e via que não era verdade. Chorava até dormir;.

Domingo, 7. Yudiro não dormiu de tanta excitação. Gilvan o ensinou a pilotar sua cadeira dos sonhos, como pai ensina filho a andar de bicicleta com rodinha. ;É como se eu estivesse andando com minhas pernas;, comoveu-se o rapaz. E riu: ;Agora, eu vou poder ir a festinhas, passear na praça, paquerar as meninas...; Gilvan lhe entregou um vídeo em que Patrick gravou uma mensagem. Na voz abafada pela traqueostomia, e já com sotaque americano, ele disse: ;Ela me serviu, agora servirá a você;. Sozinho pelas ruas da cidade, Yudiro seguiu com sua cadeira. Será uma longa caminhada. A de toda uma vida, enquanto tiver força para continuar. Gilvan, 60 anos, enxuga as lágrimas e admite, diante daquela cena: ;Essa história precisava do ponto final;. Ei-lo.

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