Recluso em um sítio na cidade de Ibiúna, interior de São Paulo, o ex-funcionário da construção civil Doracy Maggion precisa de pelo menos seis pausas para vencer 50 lances de escada. O ar que falta nos pulmões do aposentado, de 72 anos, se deve à abestose, doença provocada exclusivamente pela intensa exposição ao amianto(1) durante 20 anos. Proibida em mais de 50 países, mas liberada no Brasil, a fibra mineral é utilizada em materiais de construção de casas populares, pelo baixo custo, mas carrega a preocupante estatística de provocar a morte de 100 mil pessoas em todo o mundo, a cada ano, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Responsável por movimentar um mercado de quase R$ 3 bilhões, o mineral terá o banimento votado pela Comissão de Meio Ambiente da Câmara nas próximas semanas. A votação terá a presença de vários trabalhadores expostos ao amianto, agora doentes. ;Hoje vou visitar meus antigos companheiros e estão todos grudados em balões de oxigênio. Sei que meu fim será o mesmo e já tenho um balão reservado para pôr fim aos meus dias;, sentencia Doracy.
O banimento do amianto foi sugerido pelo grupo de trabalho que pesquisa o produto há três anos na Câmara. O relatório final do estudo, de 650 páginas, foi concluído na semana passada pelo relator, o deputado federal Édson Duarte (PV-BA). O documento reúne entrevistas, visitas presenciais a minas desativadas e em exploração, e análise da situação dos antigos trabalhadores expostos ao material. Com a morte sentenciada pela fibra mineral, os antigos trabalhadores do amianto planejam vir a Brasília pressionar para que o relatório seja aprovado. Encontrarão no lado oposto da mesa o forte lobby de empresas que sobrevivem da extração e comercialização do mineral.
De acordo com o relatório, não há níveis toleráveis para exposição ao amianto e, por questões de saúde pública, o Brasil deveria seguir o mesmo caminho já adotado por Argentina, Uruguai, Chile e todos os países da União Europeia: banir a extração e comercialização do mineral no país. A medida, embasada pelo sofrimento de milhares de pessoas, encontra forte resistêntica pelo impacto econômico. A sua substituição por outros materiais, como o polietileno, aumentariam o preço total da construção civil em, aproximadamente, 30%.
Quem defende o material alerta para o impacto negativo à balança comercial, que bateria nos US$ 180 milhões ao ano. Ainda, cerca de 170 mil pessoas sobrevivem da cadeia produtiva do material no Brasil. A polêmica, que opõe saúde pública à economia, divide a Esplanada. Os ministérios de Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Relações Exteriores, e Minas e Energia apoiam o uso controlado do amianto. Os ministérios do Meio Ambiente, Trabalho e Emprego, e Saúde são favoráveis ao banimento.
Justiça
As consequências para a saúde dos expostos ao amianto são devastadoras. O período de latência para que as doenças apareçam são o maior entrave para o diagnóstico. Em geral, os primeiros sintomas são notados até 50 anos após a exposição. Em alguns casos, o desenvolvimento das doenças provoca a morte em, no máximo, dois anos. ;O amianto é o agente ocupacional que se relaciona, individualmente, com o maior número de mortes e casos de doenças no mundo inteiro. É o agente que mais casos de óbito gerou até hoje, individualmente;, afirma o pneumologista da Fundacentro, Eduardo Algranti.
Dos trabalhadores brasileiros expostos ao amianto, a maioria manipulou o produto durante a década de 70, quando a exploração foi mais intensa, em cidades do interior de São Paulo, Bahia, Minas Gerais e Alagoas. Nesses locais, há um rastro de pessoas vitimadas por doenças relacionadas ao produto, sem qualquer assistência dos antigos empregadores. O descaso incentivou a criação da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), com sede em Osasco (SP), em 1995. ;Houve uma carnificina dos funcionários expostos ao amianto. De 1,2 mil expostos ao amianto que conseguimos reunir, somente em Osasco, 65% tinham patologias relacionadas à fibra, sem contar a ocorrência indireta, nas mulheres e filhos desses trabalhadores;, denuncia a auditora fiscal do Ministério do Trabalho, Fernanda Giannasi.
Aos trabalhadores doentes, antigas empresas que trabalhavam com o amianto ofereceram acordos que variavam com a gravidade da doença. O maior valor chegava a R$ 15 mil. O negócio, porém, impossibilitava cobranças judiciais futuras. Cerca de 3 mil acordos extrajudiciais foram firmados, somente por duas empresas, Brasilit e Eternit. Antigas parceiras comerciais na exploração do amianto, as duas empresas disputam a primazia do mercado de coberturas e caixas d;água, sendo que a Brasilit abandonou a utilização da fibra mineral. A Eternit jura que consegue extrair e manipular o produto com segurança, a partir do uso controlado. ;Fazemos o monitoramento permanente da qualidade do ar, temos todo um aparato de segurança para que o ambiente de trabalho seja seguro. Desde meados da década de 80 não temos registros de doença entre os nossos trabalhadores;, defende o presidente do grupo Eternit, Élio Matins. Pesquisas apresentadas pela empresa para defender a tese do uso controlado ainda não foram concluídas e sofreram críticas por terem sido financiadas por empresas que exploram o produto.
Longo caminho
Segundo a Eternit, por trás do banimento do amianto estaria a disputa comercial pelo domínio do setor. Dos quatro estados que já aboliram o amianto (Rio de Janeiro, São Paulo Pernambuco e Rio Grande do Sul), três têm fábricas da Brasilit. Sem o amianto, a Brasilit dominaria o mercado, já que é a única a produzir com fibra sintética no país. A empresa nega o lobby pelo banimento e diz que o amianto foi abandonado por uma questão de política global.
Mesmo que a votação do relatório do grupo de trabalho sobre o amianto confirme a tese do banimento, a questão ainda precisará percorrer um longo caminho dentro do Congresso Nacional. Atualmente, 11 projetos sugerem a proibição do amianto. Reunidos em um único texto, teriam de ser aprovados na Câmara e no Senado, antes de passar pela sanção do presidente da República.
(1) - Liberado com ressalvas
Fibra mineral utilizada na fabricação de coberturas, telhas, caixas d;água e até freios automotivos. O Brasil é o terceiro maior produtor de amianto do mundo, atrás apenas do Canadá e do Cazaquistão. Divide-se em dois grupos: anfibólio e crisotila. O primeiro é o mais danoso ao organismo e foi proibido no Brasil. O segundo teve o uso liberado, mas sob índices de segurança.
DIRETO DO INTERIOR
Atualmente, o amianto tipo crisotila é extraído no Brasil apenas em Minaçu, cidade do interior goiano na divisa com Tocantins, a 500km de Goiânia. De propriedade da fabricante de caixas d;água e coberturas de fibrocimento Eternit, é a maior mina da América Latina e a terceira maior do mundo. Tem medidas impactantes, com 2,7 quilômetros de extensão, 1 quilômetro de largura e profundidade de 130 metros.
Sua pujança é responsável por cerca de 80% dos tributos pagos a Minaçu. De acordo com a empresa responsável pela mina, o sistema atual de extração é seguro e permite a inalação do pó de amianto em níveis toleráveis para o organismo.
FICHA MÉDICA
Doenças associadas ao amianto
- Abestose ou fibrose pulmonar: surge 10 anos depois da exposição à fibra mineral
- Câncer de pulmão: surge 25 anos após a exposição
- Mesotelioma de pleura: fatal em até dois anos e aparece até cinco décadas depois do primeiro contato com a fibra.
Outras ocorrências
Doenças pleurais, câncer de laringe, dos órgãos do aparelho digestivo, reprodutivo e de defesa do organismo