Brasil

Como a MPB driblou a censura

Segunda parte da série do Correio sobre a censura musical revela que, antes de recorrer ao pseudônimo Julinho da Adelaide,Chico Buarque conseguiu escapar da tesoura graças às referências a Dom Quixote

postado em 26/04/2010 07:58
Quando Chico Buarque de Hollanda subiu no palco do Ginásio de Esportes de Brasília, num sábado frio de 1973, as torcidas do 3; Festival de Música Jovem do Ceub ignoraram as rivalidades típicas de uma competição musical e receberam o ídolo sob fortes aplausos. Após a performance, que ofuscou convidados como Gilberto Gil e Ivan Lins, o cantor falou ao Correio sobre um tema que, naquele junho turbulento, era tratado à boca miúda: o cerco da censura. ;As músicas totalmente vetadas ficam guardadas para reuniões com meus amigos, que as cantam até cansar;, afirmou.

Naquela época, os embates entre Chico e os censores eram recorrentes. Algumas vezes, com vantagem para o compositor. O caso da música Sonho impossível, versão de Chico para composição de Mitch Leigh e Joe Darion (Impossible dream), é um exemplo desse jogo de cintura. Com trechos como ;sofrer a tortura implacável; e ;vencer o inimigo invencível;, a canção poderia ser interpretada como um apelo contra a brutalidade militar. Mas foi liberada, e sem ressalvas, pela Polícia Federal.

Os motivos da decisão oficial estão em documentos de 4 e 7 de junho de 1973, analisados pelo Correio na segunda parte da série de reportagens sobre como a censura silenciou os músicos brasileiros. O chefe da censura no Rio de Janeiro, Oresto Mannarino, demonstrou preocupação com o conteúdo da letra ; que seria declamada no musical O homem de La Mancha, de Ruy Guerra ;, e a enviou a Brasília. Mas a referência ao clássico Dom Quixote, de Cervantes, salvou o texto da degola. ;Embora o autor da versão tenha alguns trabalhos passíveis de censura, o presente retrata o sonho, não do autor (que, a nosso ver, delira), mas do ;cavaleiro de La Mancha;;, observou o censor Joel Ferraz, ao fim de um longo formulário.

A batalha contra o ;inimigo; foi vencida. Mas a inimizade entre o poeta e os fardados era duradoura, e havia começado muito tempo antes. Em setembro de 1966, um dos 16 temas do musical carioca Meu refrão ; na boate Arp;ge, no Leme ;, Tamandaré naufragou diante das pressões da Marinha brasileira, que a considerou ofensiva à imagem do almirante Joaquim Marques Lisboa. As tensões aumentaram cinco dias após a decretação do AI-5, em 18 de dezembro de 1968, quando o sambista acordou com a polícia dentro de casa. Às sete da manhã, Chico foi levado num carro do Dops (com chapa fria), para o Ministério do Exército, na Avenida Presidente Vargas. Depois de responder a perguntas sobre cenas de peça Roda-viva, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, foi solto no fim da tarde.

Vinicius: ;Faça barulho;
O terreno parecia minado. Autorizado pelos militares a fazer uma viagem à Europa em janeiro (ele se apresentaria numa feira de música em Cannes, na França), se exilou na Itália. Retornou em março de 1970. À época, o amigo Vinícius de Moraes recomendou: ;Volte ao país fazendo barulho.; O poeta respondeu à euforia do governo com o hino Apesar de você. O sucesso radiofônico só foi vetado um mês depois do lançamento, quando uma nota de jornal apontou que os versos ;apesar de você, amanhã há de ser outro dia; sugeriam uma ;homenagem; ao presidente Médici. Os discos que estavam no estoque foram quebrados.

Ainda assim, Chico continuava a responder às ameaças. Composta com Gilberto Gil para o show Phono 73 (organizado pela gravadora Phonogram), a vetada Cálice foi interpretada pela dupla em versão quase totalmente instrumental. Mas a batalha durou pouco: os microfones foram cortados.

A provocação mais bem-sucedida do artista viria com o personagem Julinho da Adelaide. Depois da proibição da peça Calabar, entre 1973 e 1974, Chico notou que seria impossível conseguir aprovação oficial para novas canções. Daí o parto acelerado de Júlio César Botelho de Oliveira, o autor invisível (mas falastrão) de Acorda, amor, Jorge Maravilha e Milagre brasileiro. Em entrevista ao jornal Última hora, o sambista Julinho contou que era filho de uma mulher da favela, Adelaide de Oliveira, e tinha um meio-irmão louro chamado Leonel. ;Não devo nada ao Chico Buarque nem ele deve nada a mim. Eu sou é pragmático;, admitiu.

[SAIBAMAIS]O disfarce foi descoberto ainda em 1975, em reportagem do Jornal do Brasil. Depois, a Polícia Federal passaria a cobrar, com as letras submetidas à censura, cópias dos documentos do músico. Processos analisados pelo Correio mostram que, nos anos 1980, as canções do compositor já não sofriam restrições da censura. O apelo bem-humorado de Julinho contra a truculência policial, no entanto, ficaria registrado no disco Sinal fechado, de 1974: ;Chame o ladrão, chame o ladrão;;


O drible de Valle


Na capa do disco Previsão do tempo, de 1973, um homem barbudo submerge em uma piscina. Os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle acreditavam que aquela imagem era um símbolo forte para a resistência aos métodos violentos do regime militar. Ela representava à perfeição o espírito de um álbum que, já no título, se assumia como observação de uma época. Enfrentar a sensibilidade dos censores ; nem que de forma sorrateira, nas entrelinhas da poesia ; era uma causa que unia artistas como Chico Buarque e Gonzaguinha. A provocação política dos irmãos Valle, no entanto, passou despercebida tanto pela polícia quanto pelos artistas. É um capítulo ainda incompreendido na história da MPB.

Foi numa festa organizada pela gravadora Odeon e pela TV Tupi, em meados de 1973, que os compositores ouviram um conselho de Gonzaguinha: ;Essa música é uma porrada. Vai dar problema;, alertou o compositor. O motivo de preocupação era a faixa Flamengo até morrer. Os versos da canção, falsamente ufanistas, retratavam um país que afogava as derrotas do cotidiano em campos de futebol. ;Eu como um prato a menos, trabalho um dia a mais e junto uns trocadinhos pra ver o meu Flamengo;, conta o narrador. E festeja, num aceno ao rubro-negro Emílio Garrastazu Médici: ;Que sorte eu ter nascido no Brasil. Até o presidente é Flamengo até morrer.;

Nos trechos finais da música, no entanto, o que soa como orgulho patriota aos poucos deixa escapar um fiapo de desencanto. ;Rogério na direita, Paulinho na esquerda, Dario no comando e Fio na reserva. E o resto a gente sabe, mas não diz. E o resto é pau, é pedra, águas de março ou de abril;, comenta o torcedor. ;A gente achou que a música daria uma confusão do cacete;, admite Marcos. ;O narrador é o brasileiro totalmente alienado. Os jogadores entram na música como um exército convocado pela ditadura;, explica o autor, torcedor do Botafogo.

Equívoco histórico
Para o espanto dos irmãos, o ;olé; na repressão surtiu efeito tão sutil que, além de não ter recebido nenhum veto da censura, acabou por provocar críticas em relação a um suposto conformismo da dupla. No livro Eu não sou cachorro não (2002), do historiador Paulo César de Araújo, a canção é rotulada como favorável ao governo. ;Foi uma surpresa quando encontramos a referência no livro. Não é nada disso. Esse foi o nosso verdadeiro drible;, observa Marcos, surgido na bossa nova e autor de composições como Samba de verão e Viola enluarada.

O curioso é que, antes de Flamengo até morrer, duas letras dos irmãos foram barradas pela PF: Black is beautiful (por conta do trecho ;Um deus negro que melhore o meu sangue europeu;, convertido em ;que se integre ao meu sangue europeu;) e Mi hermoza (a palavra ;parir; foi substituída por ;gerar;). ;Neste último caso, fomos chamados à censura. Acho que foi aquela Solange (Hernandes) que nos chamou. Ela disse: ;não pode passar a palavra parir;. Perguntamos: então não pode passar a palavra ;filho;? Ela não cedeu;, lembra o carioca de 66 anos.

As duas faces de Taiguara

Apesar de inúmeras tentativas, a censura não conseguiu silenciar a revolta de Chico Buarque. Mas esses eram exceções. Os métodos de repressão abafaram por completo os protestos de compositores como o uruguaio Taiguara Chalar da Silva (1945-1996). O ídolo elegante de canções românticas entrou nos anos 1970 com fome de política. Uma guinada que provocou consequências desastrosas. Perseguido pela censura, teve mais de 60 músicas proibidas e, sem dinheiro e endividado, abandonou o país. Retornou em 1976, mas sofreu um novo baque: o disco Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara foi proibido na íntegra. Taiguara (foto) deixou novamente o Brasil e só voltou no fim do regime militar. ;Esse Taiguara politizado, com preocupações sociais e inimigo da ditadura militar, só ficou conhecido por seus fãs mais ardorosos. Para a maioria das pessoas, existiu apenas o Taiguara romântico de Universo no teu corpo e Hoje, hits do fim da década de 1960 e começo da década de 1970;, observa o pesquisador Alberto Moby.


Máquina de produzir silêncio

Restrições, recursos, apelos e mudanças até o veredicto: veto ou liberação. Como funcionavam as diversas instâncias da Censura

Um dos sucessos mais queridos do repertório de Luiz Melodia, Presente cotidiano por pouco não definhou nos corredores da Superintendência da Polícia Federal do Rio de Janeiro. Enviada ao Serviço de Censura de Diversões Públicas da Guanabara, em maio de 1973, a música descreveu uma trajetória que, durante todo o período do regime militar, não poupava ninguém: ameaçava ídolos da MPB e anônimos. Como era de praxe, três cópias da letra foram enviadas pela gravadora do artista, a Phonogram, à Polícia Federal. Em muitos casos, os versos de canções que chegavam à PF eram liberados nessa ;primeira instância;. Mas não foi o que aconteceu com Melodia. ;Trata-se de letra musical cuja temática estereotipada envolve em seu bojo o sentimento de contestação, protesto, revolta;, analisou um técnico da censura, em documento pesquisado pelo Correio. Veredicto: veto total. Inconformada com a decisão, a gravadora recorreu à chefia da Divisão de Censura e Diversões Públicas, em Brasília. Após essa etapa, a canção foi liberada, mas com restrições. A divulgação nas rádios foi proibida. Os fãs do cantor tiveram que esperar cinco anos para ouvir a composição, cujos versos ;Tá tão ruim, tá tão ruim/ Quem vai querer comprar banana?; só apareceram no disco Mico de circo, de 1978. No infográfico abaixo, acompanhe o percurso seguido por artistas na máquina da ditadura.

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