Brasil

O fim depois do fim: mesmo com a redemocratização, a censura se arrastou por mais três anos

Um dos últimos embates se deu com o carioca Fausto Fawcett, que provocou o confronto aberto da gravadora WEA com os burocratas do veto

postado em 28/04/2010 08:30
A Nova República era uma realidade não muito recente quando, em junho de 1987, o presidente José Sarney anunciou a criação de um pacote econômico para conter a inflação. O Plano Bresser previa congelamento de preços e paralisação de grandes obras de infraestrutura. Para o brasileiro, a notícia confirmava um sentimento cada vez mais concreto: o projeto de uma democracia sólida, interrompido com a morte de Tancredo Neves (em abril de 1985), não passava de um esboço incerto. Havia outros indícios de que aquele era um período de transição, ainda marcado por rastros de autoritarismo. A abertura política não conseguiu estancar a censura.

Quando escreveram os versos ultraviolentos de A chinesa videomaker, Fausto Fawcett e Carlos Laufer sabiam que atiravam pimenta sonora nos olhos dos técnicos da Polícia Federal. Em tom de crônica policial, a canção narrava o destino trágico de uma mulher que, transtornada por noitadas sem limites, é encontrada morta na Avenida Atlântica, com pupilas de vinil ensanguentadas. Soava como uma ousadia explícita demais para o conservadorismo do Estado. Mas, em junho de 1987, na véspera do lançamento do disco Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros, a gravadora WEA decidiu enfrentar a fera: sem amenizar o golpe, enviou os versos para a Divisão de Censura de Diversões Públicas, em Brasília.

O processo resultou em um dos últimos vetos oficiais antes da Constituição de 1988, que enterrou o modelo militar de censura musical. No ocaso do DCDP, o embate entre as gravadores e os oficiais federais era frontal. ;A Chinesa mexia com essa trindade tão odiada pela censura: sexo, drogas e violência. Era explícita. Não havia a pretensão de lançá-la nas rádios. Por isso, não me incomodei muito com a proibição;, lembra Fawcett. Entre as sete letras submetidas à Polícia Federal, três foram ameaçadas pelos censores.

Nada de proibição sumária, entretanto. Em duas páginas e meia, assinadas por Maria Arlete Cidade, os técnicos cobraram a substituição de ;passagens com expressões grosseiras e vulgares; em A chinesa videomaker, Drops de Istambul e Estrelas vigiadas. Até aí, um procedimento que era considerado corriqueiro. A diferença foi que, em vez de acatar as imposições, a WEA partiu para o confronto. Em documento enviado ao presidente do Conselho Superior de Censura, em 25 de agosto de 1987, a gravadora anexou matérias de jornais e revistas a um dossiê que comprovava o ;excelente potencial artístico; da banda. As músicas eram definidas como ;reportagens do submundo carioca;.

O manifesto improvisado, e confidencial, mostra como, em 1987, não havia mais pudores nos debates entre as gravadoras e a censura. ;Se aos produtores fonográficos coubesse a tarefa de censurar, nosso mundo seria mais pobre. Não se conheceriam as ideias de Galileu Galilei, o gênio de Honoré de Balzac, a angústia de Jean Genet;, enumera o documento. No relatório do Conselho Superior de Censura, escrito por Tarcísio Della Senta, a justificativa para a proibição da música toma duas páginas e acusa a WEA de questionar as responsabilidades da censura. ;Qual é a arte e o talento que defendem? A que o dinheiro e a máquina da propaganda fabricam?;, escreve, e faz comparações com a propaganda nazista.

Sobre as músicas de Fawcett e Laufer, o censor não refugou: ;Merece apreço o interesse da WEA em levantar a bandeira contra o caos e a degradação dos subúrbios do Rio. Resta saber se a maneira como o faz não está passando a bandeira para as regiões brasileiras que não vivem os dramas do submundo de Copacabana;. Ainda que tenham sido vetadas para as rádios, as canções não resultaram em prejuízos financeiros para os compositores ou para a WEA. O hit do álbum era outro: Kátia Flávia. ;A geração dos anos 1980 não tinha preocupação de contestar. Eles foram fazendo e fazendo. Dentro do roldão de assuntos de que tratavam, acabavam esbarrando, cutucando a mentalidade da censura`, observa Fawcett.

Queda de braço

;Se aos produtores fonográficos coubesse a tarefa de censurar, nosso mundo seria mais pobre;
Trecho de documento da gravadora WEA

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;Qual é a arte e o talento que defendem? A que o dinheiro e a máquina da propaganda fabricam?"
Trecho de relatório do Conselho Superior de Censura


Não foi só o Chico...;

Histórias de compositores que foram censurados na ditadura

;As referências depreciativas (de Can can do Brasil) ferem a dignidade nacional. Em Roda de chimarrão há emprego de linguagem grosseira, imprópria à boa educação do povo;

Processo de Can can do Brasil e Roda de chimarrão, de Kleiton e Kledir, em 19 de novembro de 1984. As músicas foram vetadas para as rádios

KLEITON E KLEDIR
;O máximo do absurdo;
Em 19 de novembro de 1984, a dupla gaúcha Kleiton e Kledir enviou as letras de Can can do Brasil e Roda de chimarrão para apreciação federal. As duas foram barradas. A primeira, vitimada por ;referências depreciativas que ferem a dignidade nacional;. A segunda, pela ;linguagem grosseira, imprópria à educação do povo; ; a palavra ;mijação;, incluída numa letra sobre crendices populares, virou o centro da discórdia. Em Can can do Brasil, composta por Kleiton Ramil, ainda se tentou uma alteração em alguns trechos: ;Tens a coxa até o nariz;, por exemplo, virou o enigmático ;tens até o nariz;. Mas como retocar o verso ;abre as pernas, Brasil feliz;? ;Esses dois casos dão uma amostra bem clara da falta de critério e de bom senso na forma como era feito esse tipo de análise na época. Eles mandavam sugestões para alterarmos as letras. O que era o máximo do absurdo. E tivemos que conviver com isso ainda por um bom tempo;, afirma Kledir. As músicas foram proibidas para radiodifusão, mas lançadas em disco. ;A ditadura estava se esfarelando. No início dos anos 1980, começam a anistia dos presos políticos, as manifestações pelas eleições diretas. Existia o processo de abertura. O que era estranho para nós é que, se começávamos a respirar um pouco mais, a estrutura da censura continuava existindo. Demorou para acompanhar esse ritmo, mais do que os próprios militares;, observa o músico.

MARKU RIBAS
;Tomaram nossa liberdade;
Escrita em 1967, a música Nunca vi, de Marku Ribas, foi usada pelos militares como prova contra o compositor, preso em 27 de outubro de 1968, no Leblon (Rio de Janeiro). Na primeira estrofe, Marku conta a história de um país democrata com mania de reis. ;É rei do rock, rei do samba, rei da bola. Enquanto isso, outra criança chora e o palácio anuncia um outro rei;, cantava. ;Foi por causa disso que eu fui preso. Tomaram nosso tempo, nossa liberdade;, lembra o cantor, que se exilou na França entre 1970 e 1971. Em fevereiro de 1980, para participar do Festival Internacional da Canção (no Maracanãzinho), Marku escreveu com Paulo Coelho uma segunda versão. Mas a censura se incomodou com três letras: ;PQP; teve que ser modificada para ;é você;. ;Essa letra teve que ser mudada três vezes. O impulso imediato do artista é criar. Usar a música é mais palatável do que segurar um fuzil. Eu me divertia até o ponto em que virou brutalidade;, conta.

JOYCE
;Eles eram moralistas;
Longe da perseguição política, letras mais amenas esbarravam nos critérios mais excêntricos da censura. O título de Tentação, de Dominguinhos, teve que ser alterado em 1981 para Depois da derradeira. Motivo: era ;malicioso; demais. Já o veto à execução pública de Eternamente grávida, da carioca Joyce Moreno (que, na época, atendia apenas por Joyce) ainda soa inexplicável para a própria compositora. ;A censura era extremamente moralista. Mas fiquei surpresa, já que muita coisa de conteúdo sexual bastante explícito estava passando, e a minha música era totalmente maternal, fazendo uma analogia entre a criação musical e o parto;, afirma. No parecer da censura, o motivo da proibição está contido num verso: ;Parir para mim é um prazer;. ;Acho que os censores consideravam ;parir; uma palavra chula, ainda mais associada a um sentimento prazeroso;, interpreta.

GONZAGUINHA
Não ao Papai Noel ;de saco cheio;
Nem no período mais truculento do regime militar, as canções natalinas não entraram na relação de temas malditos, fiscalizados rigorosamente pela censura. Mas, em março de 1981, uma letra chamada E viva o Natal foi recebida pelos técnicos da Polícia Federal como um presente suspeito. Nos versos, Papai Noel aparecia desbotado, magro e acabado. O bom velhinho estava de ;saco cheio". Para os censores, a inversão da fantasia infantil soou como ato subversivo. Mas um fator talvez mais importante influenciou na decisão da PF. Desde o início dos anos 1970, a assinatura de Luiz Gonzaga Jr era o suficiente para justificar o uso da tesoura. No caso de E viva o Natal, o produtor cultural e crítico Ricardo Cravo Albin, à época na EMI-Odeon, escreveu a defesa do autor. ;Gonzaguinha é vítima de primeira linha dos lautos banquetes da censura", criticou Albin. Poucos meses depois, o Conselho Superior de Censura liberou a letra.

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