Marcone Gonçalves
postado em 15/06/2010 08:16
O governo federal pretende apertar o cerco à compra descontrolada de terras em todo o país por empresas e pessoas físicas estrangeiras. A primeira medida já está pronta para ser assinada pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva: a mudança do parecer da Advocacia Geral da União (AGU), que havia dispensado empresas brasileiras controladas por estrangeiros da obrigatoriedade de licença do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para aquisição de fazendas.Além disso, o Executivo tentará remeter ao Congresso Nacional, ainda este ano, um projeto de lei que consolida a legislação que trata do tema, que se transformou em um emaranhando confuso de ser entendido e aplicado pela Justiça. O objetivo é impedir manobras legais e fazer valer as regras impostas, quase todas elas, durante o regime militar. Por trás da iniciativa do governo está a preocupação com a integridade do território, que virou objeto de cobiça de grandes corporações chinesas, americanas e europeias que atuam com a produção de alimentos.
Em uma série de reportagens, o Correio vem revelando a situação de descontrole fundiário no Brasil. Na raiz do problema está a falta de controle e de informações mínimas sobre as operações de compra e venda de terras, situação agravada pela interpretação que os órgãos do próprio governo faz da legislação agrária. O caso do parecer da Advocacia Geral é emblemático. Uma vez que uma emenda constitucional estabeleceu que empresas sob controle de estrangeiros seriam consideradas brasileiras, a AGU informou ao Incra que não seria mais necessária a autorização para que essas companhias adquirissem terras.
O entendimento da AGU, que deve ser derrubado nas próximas semanas, fez com que os cartórios de registro de imóveis deixassem de controlar tais propriedades, o que facilitou a compra de terras por estrangeiros, que ficaram escondidos como pessoas jurídicas ;brasileiras;. Eles também foram favorecidos pelo fato de, na maior parte do território nacional, o Judiciário sequer dispor de pessoal capacitado para fazer os registros legais. Além disso, nem mesmo as prefeituras sabem a extensão das propriedades rurais, o que torna quase impossível, na maioria dos estados, limitar a compra de fazendas por estrangeiros a, no máximo, um quarto do território municipal.
Outra determinação difícil de cumprir é a exigência de autorização do Incra para a compra, por pessoas estrangeiras em todo o território, de terras de tamanho superior a três e inferior a 50 Módulos de Exploração Indefinida (MEI). O tamanho desses módulos varia de acordo com cada microrregião definida pelo IBGE.
;Hoje é impossível saber se um estrangeiro, que acaba de comprar uma fazenda em Santa Maria (RS), tem propriedade rural em Altamira (PA);, exemplificou o juiz Marcelo Berthe, coordenador do Fórum Nacional Fundiário, que reúne órgãos dos governos federal e estaduais, além do Judiciário. A saída para o problema do descontrole, de acordo com o magistrado, começou a ser implementada ontem, com a assinatura de um acordo entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Conselho Nacional de Justiça para a modernização dos cartórios da região Norte, que concentra cerca de 40% do território nacional e a maior parte dos problemas fundiários do país.
Por meio do convênio, o MDA vai colocar à disposição do Judiciário R$ 10 milhões a serem investidos em sistemas e equipamentos que padronizem os procedimentos de registros de imóveis e permitam a criação de um banco de escrituras das propriedades da região. Dentro de dois anos, essas informações estarão interligadas com os cartórios dos demais estados. Isso permitirá a qualquer juiz penhorar imóveis, e ao governo, controlar, finalmente, a entrada de estrangeiros no campo. ;Com o sistema, saberemos onde estão, quais são e qual a área que os estrangeiros ocupam. Toda vez que uma compra ultrapassar os limites legais, o juiz poderá cancelar o registro, além de instaurar o procedimento visando a regularização;, explicou.
A parceria vai proporcionar treinamento para funcionários e juízes e financiar a restauração e digitalização de documentos danificados. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, aponta a modernização dos cartórios como fundamental para que o país exerça um controle efetivo sobre a venda de terras na Amazônia para estrangeiros.
Análise da notícia
Primeiro passo
Lúcio Vaz
As medidas anunciadas ontem pelo governo brasileiro representam um primeiro passo ; mas um passo importante ; no esforço para regulamentar, controlar e impor limites à compra de terras por empresas estrangeiras. O Incra admite que o seu cadastro de imóveis rurais deve abarcar, no máximo, 20% das propriedades adquiridas pelos gringos. A responsabilidade por esse descontrole pode ser atribuída a diversos setores do poder público. Começa por uma legislação confusa, desatualizada e demasiadamente flexível. Os cartórios falham ao não informar ao Incra as aquisições dos estrangeiros. A Justiça peca ao não cobrar o cumprimento da lei pelos cartórios. E o governo federal, somente agora, começa a se preocupar com um problema que vem de décadas.
Um dos maiores entraves, segundo a análise de procuradores que estudam o caso, é realmente o parecer da AGU, que dispensou empresas brasileiras controladas por estrangeiros da obrigatoriedade de licença do Incra para comprar fazendas. Pela interpretação da legislação brasileira, uma multinacional cria uma empresa em solo brasileiro, com capital estrangeiro, e passa a ter o tratamento de empresa nacional.
O fundamental nisso tudo é preservar a soberania nacional, impedindo a ação agressiva de grandes grupos e até nações estrangeiras. Os chineses já anunciam a compra de milhões de hectares de terras nas regiões de fronteira agrícola. Os japoneses já estão no Oeste baiano. Os portugueses, por toda a parte.
Mas é um primeiro passo. A luta definitiva vai acontecer no Congresso. E não será definida no governo Lula. Não dará tempo.