postado em 22/06/2010 08:33
Se o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras deve promover a diversidade e vedar o proselitismo, conforme determina a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, os livros didáticos da disciplina estão reprovados. Numa amostra de 25 obras publicadas pelas maiores editoras do país, é clara a hegemonia cristã, ocupando 65% do conteúdo abordado, contra 3% de componentes ligados a religiões espíritas ou afro-brasileiras, por exemplo. Em relação aos líderes religiosos e seculares mencionados nos livros, Jesus aparece vinte vezes mais que Martinho Lutero, para citar uma referência no protestantismo. Pior: alguns grupos são alvos de discriminação nas obras, como os homossexuais e os ateus.As constatações fazem parte de uma pesquisa inédita ; encomendada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) à Universidade de Brasília e à organização não governamental Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) ; que será apresentada hoje em Brasília. Uma das autoras do estudo, a antropóloga Debora Diniz destaca a falta de pluralidade nos livros como um indicativo de que as aulas têm viés claramente proselitista. ;Que diversidade um ensino religioso cristão e confessional, não compatível com um Estado laico, pode mostrar?;, questiona.
Como o material da disciplina, embora de oferta obrigatória nas escolas, não é distribuído pelo Ministério da Educação (MEC), por entender que o ensino religioso deve ser regulado pelas secretarias estaduais, os pesquisadores escolheram analisar obras de grandes editoras(1). ;Não pegamos livros feitos em fundo de quintal. São editoras adotadas pelo MEC em outras matérias, como português ou matemática;, explica Debora. Para ela, o fato de quase 80% da população brasileira se declarar católica, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não é uma justificativa plausível para o cristianismo majoritário nas publicações didáticas. ;Não estamos falando de livros de catecismo, mas sim de ensino religioso para a diversidade, e não de educação religiosa para a maioria.;
Remí Klein, coordenador do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso, entidade que articula ações na área, reconhece a precariedade dos livros. ;Fiz uma pesquisa recente com algumas editoras e realmente verificamos pouca diversidade abordada. Veja que a cultura afro e indígena, justamente as duas matrizes que são a constituição do nosso povo, aparecem muito pouco;, afirma Klein. De acordo com ele, que também dá capacitação a professores, o mais difícil é ensiná-los a abordar o tema. ;Há um hiato na formação dos docentes. Eles entendem o que a LDB diz sobre a pluralidade, mas não sabem aplicar num plano de aula ou numa realidade concreta;, afirma.
A professora Maria Luiza Rodrigues prefere não correr riscos. Com 15 turmas de ensino religioso numa escola pública da Asa Sul, ela produz o material a ser utilizado em sala. No armário, mostra dezenas de coleções sobre as mais variadas religiões nas quais se inspira. ;Direciono minhas aulas para a questão da cidadania. Até a introdução da apostila do Detran, que é uma lição de civilidade, eu utilizo. E falo para os alunos que eles não vão estudar nada de cunho divino aqui, o que eu cobro é um pouco do que eles precisarão saber para tirar carteira;, diz a professora. Aos estudantes que se adiantam em declararem-se ateus, Maria Luiza tem a resposta na ponta da língua: ;Não tem problema ser ateu, só não pode ser à toa;, brinca.
Algumas referências desrespeitosas a determinados grupos da sociedade também foram verificadas na pesquisa. Entre os 25 livros que compuseram a amostra, apenas um trata da homossexualidade, utilizando expressões como ;desvio moral; e ;não natural; para abordar o assunto. Ao fim da passagem, o questionamento: ;Se isso se tornasse a regra de conduta humana, como a humanidade se perpetuaria?;. Em outra passagem da mesma obra, um texto com o título ;Quem matou Deus?;, sobre agnósticos, é ilustrado com foto de um campo de concentração. Para o presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), Daniel Sottomaior, o ensino religioso nas escolas nem deveria existir. ;Nossa sociedade não tem capacidade de oferecer essa disciplina sem haver proselitismo, como a lei determina;, lamenta. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi procurada pela reportagem, mas não respondeu aos questionamentos feitos.
1 - Empresas grandes
As editoras seculares cujos livros de ensino religioso passaram pela análise dos pesquisadores foram FTD, Ática, Saraiva, Moderna e Dimensão. As editoras religiosas foram Scipione, Vozes, Paulus, Paulinas, Vida e Loyola. As obras estudadas são indicadas para ensino fundamental e médio.