postado em 27/06/2010 08:25
Barreiros (PE) ; Na Mata Sul de Pernambuco, só há uma senhora mais desafiadora que a chuva: a fome. Está nos recôncavos de pequenos vilarejos, onde a água das enchentes foi tanta que a ajuda dos governos, do Exército e de voluntários demora a chegar. A fome parece ser resistente a tudo, sobretudo ao tempo. É muito pior que a lama sólida, para desespero da família Silva, mal instalada sob os cacos da última casa da Rua Generino, no bairro do Tibiri. ;Ontem (quinta-feira), esses meninos choravam tanto, que só vendo. E eu não consegui nada para eles comerem;, conta Odete Maria da Silva, 34 anos, ao lado do marido, José Amaro. Pais de oito filhos com idades entre 5 e 15 anos, os dois enfrentam a velha conhecida, que agora ganhou mais força.A família Silva representa a fome e a miséria de outras 80 mil pessoas, entre desabrigadas e desalojadas, afetadas pelas cheias em Pernambuco. Com o passar dos dias, a infraestrutura de apoio tem melhorado e levado mais longe os donativos aos flagelados, mas ainda falta muito nos 67 municípios atingidos. Corpo magro, olhos arregalados e expressão entristecida, Odete pensa também em como reconstruir a casa de taipa de três cômodos da família. Quer ainda tirar a vaca morta que apodrece a 100m do barraco e incensa o ambiente com o cheiro de carniça. ;Mas como? Faz cinco dias que não chega nada nem ninguém aqui. Estamos isolados;, lamenta Amaro.
Sete das crianças ; Mireli, 5 anos; Javé, 6; Marco, 9; Maciel, 11; Marcikeli, 10; e as gêmeas Marciana e Marcilene, 14 ; têm dormido na igrejinha do bairro, um dos mais comprometidos pela cheia que atingiu Barreiros. O abrigo fica a 1km da casa da família. As crianças amontoam-se em dois colchões, sem lençóis suficientes para conter o frio, sob os cuidados de Odete e Josivaldo Pereira, que também perderam sua casa. Márcia, a filha de 15 anos dos Silva, grávida de três meses, passa a maior parte do dia com a mãe e o pai. Fraca, porque não come e não toma remédios para evitar os enjoos do início da gestação, apenas observa o pai separar o barro úmido que sobrou da casa de taipa. ;Se era ruim, ficou pior;, teoriza Amaro.
Às 7h da manhã da última sexta-feira, a novidade era a panelinha de macarrão Miojo que Marco ganhou na rua. Protegendo-a no meio dos bracinhos finos, o menino carregava o recipiente com cuidado, enquanto desviava dos escombros. Morria de medo de deixar cair a oportuna comida. A família Silva tinha almoço para a sexta-feira. Mas, de tão reduzido, por certo não seria páreo para a fome. ;Fico sem comer muitas vezes pra dar a eles o pouco que recebo por aí;, conta a mãe. ;Só não penso muito nisso. Deus proverá, tenho fé;, desabafa, procurando ser otimista.
Da residência dos Silva até a entrada da Rua Generino, onde o Exército distribuía água por volta das 9h, são vários quarteirões e muitos destroços. ;Quando a gente ouve o boato de que estão dando comida, a gente corre. Mas quando chega lá na carreira, já acabou tudo;, conta Odete, com Márcia ao lado balançando a cabeça em concordância.
Fico sem comer muitas vezes pra dar a eles o pouco que recebo por aí;
Odete Maria da Silva, desabrigada pelas chuvas
O número
67
Número de municípios afetados pelas chuvas em Pernambuco
Faltam barragens
Severino procura tijolos intactos para construir a nova casa: área é a primeira a ser atingida por enchentes
Quando descobre um tijolo intacto nos escombros de casa, Severino Ramos dos Santos suspira aliviado: ;Mais um!”. Nos últimos dias, sua rotina é chegar às 6h no que restou da construção e procurar por tijolos que ainda estejam em condições de uso. Severino comprou a casa há 18 anos com o dinheiro de uma indenização trabalhista. Ano passado, começou a reformá-la: ;Só faltava completar o banheiro;, lamenta. Depois da enchente, sobrou apenas uma parede em pé.
Severino mora na Rua Carrapicho, em Barreiros, às margens do Rio Una. Se não houver nenhuma mudança na região onde mora, o mais provável é que cedo ou tarde ele torne a catar tijolos para reconstruir a casa ; a área na beira do rio é a primeira a sofrer com enchentes. Segundo especialistas, a ação mais inadiável para evitar novas inundações é a construção de barragens. ;É uma medida imprescindível e urgente;, diz o professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco Abelardo Montenegro.
Especialista em recursos hídricos, Montenegro faz um alerta capaz de provocar um frio na espinha de quem vive na capital pernambucana: ;O Recife só ficou livre dessa enchente graças às barragens de Carpina e Tapacurá. Se houvesse barragens contendo as águas que invadiram 95 municípios de Pernambuco e Alagoas, o desastre lá teria sido pelo menos minimizado;, diz o professor.
Para o presidente do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Urbanismo (Confea), Marcos Túlio de Melo, tragédias como a do Nordeste exigem ;ações contundentes; de fiscalização da ocupação do solo. O Código Florestal estabelece que a distância mínima da construção seja de 50 metros. Mas a moradia de Severino e as das outras vítimas da enchente em Pernambuco e Alagoas estavam bem mais próximas das margens dos rios.
A construção de barragens, a remoção dos ribeirinhos e a recuperação das áreas degradadas exigem grandes investimentos. Segundo cálculos do governo de Pernambuco, seriam necessários R$ 600 milhões para a construção de barragens no Rio Una. Na outra ponta do argumento, vem a constatação de que os desastres naturais entram na agenda do país de forma nada preventiva. Um levantamento realizado pela ONG Contas Abertas constatou que, em 2009, o país gastou 10 vezes mais com reconstrução de danos causados por desastres naturais do que com prevenção.
Recurso federal
Larissa Leite
Os R$ 25 milhões do governo federal destinados às vítimas das enchentes começam a ser utilizados em Alagoas. Ontem, mil caixas d;água com capacidade para 500 litros cada foram entregues em seis municípios afetados (Santana do Mundaú, São José da Lage, União dos Palmares, Branquinha, Murici e Rio Largo). Outros 4 mil recipientes ; compradas com o caixa formado pelo dinheiro da União ; deverão ser distribuídas, a partir da próxima terça-feira, nos 15 municípios em estado de calamidade pública.
Na sexta-feira, 10 mil quentinhas foram entregues no estado por uma empresa contratada. Outras 20 mil refeições serão distribuídas até hoje. As duas ações integram o Plano de Trabalho de Assistência, elaborado pela Coordenadoria Estadual de Defesa Civil (Cedec) de Alagoas. Segundo a Cedec, como a assistência de gêneros alimentícios foi providenciada pelos governos estadual e federal, a população alagoana não precisa fazer doações de comida e água. Os suprimentos mais necessários são: material de limpeza e de higiene pessoal, colchões, cobertores e utensílios domésticos. No estado, 181.018 pessoas foram afetadas pelas cheias e 34 morreram.
Já o secretário de Planejamento de Pernambuco, Geraldo Júlio, afirmou que, desde a última terça-feira, o estado vem utilizando os R$ 25 milhões disponibilizados para o estado em itens como cestas básicas, água mineral, colchões e material de limpeza. No estado, 30 municípios estão em situação de emergência e nove permanecem em estado de calamidade pública. Até o fechamento desta edição, 17 mortes haviam sido contabilizadas.