postado em 01/07/2010 08:18
Prestes a completar 20 anos no próximo dia 13, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ainda é interpretado de forma muito diversificada pelo Judiciário brasileiro em um ponto central da legislação: a medida privativa de liberdade. Pesquisa inédita que será divulgada hoje, financiada pelo Ministério da Justiça (MJ) e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), constatou que, além do excesso de internação(1) no país, que deveria ser a exceção e não regra, muitas das sentenças apresentam debilidades graves, como falta de provas e de critérios preconizados pelo próprio ECA que justifiquem a reclusão daqueles com menos de 18 anos. A Secretaria de Assuntos Legislativos do MJ prepara um projeto de lei para tornar os requisitos para privação de liberdade mais objetivos, assim como para melhor regular a internação provisória, cujo prazo máximo de 45 dias também é desrespeitado frequentemente.`Precisamos amarrar melhor os procedimentos do ECA no que diz respeito à internação para evitar essas distorções`, destaca Felipe de Paula, secretário de Assuntos Legislativos do MJ. Intitulado `Responsabilidade e garantias ao adolescente autor de ato infracional: uma proposta de revisão do ECA `, o estudo executado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) se debruçou sobre os processos relativos a adolescentes privados de liberdade em seis tribunais estaduais de justiça do país (São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Paraná, Bahia e Rio Grande do Sul) e no Superior Tribunal de Jutiça (STJ), entre janeiro de 2008 e julho de 2009. Uma das conclusões é de que os recursos apresentados pela defesa quase sempre são indeferidos, ao passo que aqueles apresentados pelo Ministério Público têm alto índice de acolhimento. Já no STJ, os adolescentes conseguem um maior índice de aceitação aos seus pedidos.
No Tribunal de Justiça de São Paulo, que abriga 40% dos adolescentes internados do país, por exemplo, recursos alegando impossibilidade da internação por não atender aos critérios impostos pelo ECA não conseguiram 25% de deferimento. No STJ, a mesma alegação obteve, no período analisado, 66% de acolhimento. `Isso nos mostra, por um lado, uma justiça de primeira e segunda instâncias pouco sensível à questão, mas a Corte Superior com uma boa receptividade. Tal fenômeno certamente fará crescer o número de recursos no STJ, até para que formemos uma jurisprudência`, afirma uma das autoras do estudo, Karyna Sposato.
Francisco Oliveira Neto, vice-presidente para assuntos da infância e da juventude da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), aponta o próprio texto do ECA como possível causa de interpretações díspares. `Concordo que há falta de doutrina e, com um caráter também subjetivo, a legislação acabe dando margem aos juízes para entendimentos diferentes. Uma expressão comum do ECA, por exemplo, é o tal ;melhor interesse da criança;. Mas o que é isso? Em nome disso, pode-se fazer qualquer coisa, inclusive mandar para a internação adolescentes que tenham cometido atos menos graves`, destaca. O juiz da vara da Infância e da Adolescência de Florianópolis ressalta que a falta de estrutura para aplicação de outras medidas, a exemplo da semiliberdade ou liberdade assistida, dificulta a aplicação do ECA de forma mais razoável. `Em muitos casos não há outra saída além da internação`, diz.
1 - Reclusão recorrente
De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos, ligada à Presidência da República, há 11.901 adolescentes, hoje, cumprindo medida socioeducativa de internação no país. E outros 3.471 na modalidade de internação provisória. Em semiliberdade, atualmente, são apenas 1.568 meninos e meninas. Quanto a outras medidas, como prestação de serviço comunitário e reparação do dano, não existe estatística centralizada. São os municípios que controlam esses dados.
Situação familiar tem grande peso
Argumentos extrajurídicos utilizados por magistrados para embasar a decisão pela internação foram outro ponto verificado pela pesquisa da Universidade Federal da Bahia. Conforme o estudo, muitos juízes recorrem à situação familiar do adolescente ou ao fato de ele usar drogas para fundamentar a sentença. ;Um adulto não vai preso porque usa drogas, mas o adolescente, sim. Ou seja, a escolha pela privação de liberdade não se atém, em muitos casos, ao fato ocorrido, mas a questões pessoais;, critica Karyna Sposato. Alguns trechos de decisões evidenciam tal pensamento: ;Privado de liberdade, o jovem aparenta bom comportamento; por outro lado, em meio aberto, revelou atitudes totalmente divergentes daquelas apresentadas. Abandono da escola e usuário de drogas;, diz um dos textos do estudo.
Outro dado que sinaliza um endurecimento da lei maior com o adolescente é o alto número de recursos da defesa questionando a internação no caso de furto. Só no STJ, uma instância altamente restrita, foram verificados 26 casos ; correspondendo a 14% das 180 ações relativas à privação de liberdade identificadas no período estudado. Para Maria Gabriela Peixoto, coordenadora de direito penal da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, o dado é sintomático. ;Um adulto condenado por furto provavelmente não ficará mais de três anos preso, que é o tempo máximo de internação de adolescentes, porque ele tem progressão de regime. Então, o que vemos é um viés condenatório bastante pesado e fomentado, em parte, pela cultura de juízes que ainda agem por influência do antigo Código de Menores;, destaca a especialista.
A pesquisa possibilitou também traçar um perfil dos crimes cometidos pelos adolescentes levando em consideração os recursos que chegam aos tribunais. Embora o padrão de infrações seja regular ; roubo, furto e tráfico de drogas na maioria dos casos ;, há estados com peculiaridades (veja quadros). O Paraná, por exemplo, é o único que tem número de recursos no tribunal significativo (34%) referentes a homicídio, perdendo apenas para o tráfico de drogas (36,39%). No Rio de Janeiro, lideram dois tipos de infrações ligadas a drogas: tráfico (41%) e associação para o tráfico (12%), seguidas por roubo (12%).
Para Karyna, mesmo os números do Paraná, com o homicídio no topo, mostram que a cultura da defesa pode estar mudando, no sentido de se tornar mais atuante. ;Quando começamos a verificar recursos nesse tipo de crime mais grave, temos aí um dado positivo. Significa que talvez os novos operadores do direito estejam mais atuantes;, afirma. Vice-presidente para assuntos da infância e da juventude da AMB, Francisco Oliveira Neto também comemora. ;O adolescente, ao contrário do adulto, que quando se vê injustiçado tenta se defender, aceita a situação. Então, os recursos são muito escassos no país. Na medida em que a defesa recorre mais, poderemos formar um doutrina, uma jurisprudência.; (RM)