Brasil

Excluídos do SUS, determinados grupos sociais comemoram portarias para as suas especificidades

Mas eles descobrem que o resultado prático é quase nulo. Ministério diz que ações estão sendo implementadas aos poucos

Rodrigo Couto
postado em 04/07/2010 08:05
Criado sob princípios humanistas e democráticos, o Sistema Único de Saúde (SUS) se tornou fonte de admiração até por alguns países desenvolvidos exatamente pelo caráter da universalidade. Atender a todos de forma gratuita e com financiamento público é o ponto central da política brasileira prevista na Constituição de 1988. Na prática, porém, o serviço exclui determinados grupos da sociedade, que, aos poucos, se organizam para reivindicar seus direitos. Negros, transexuais e portadores de doenças raras fazem parte dessa parcela que, recentemente, comemorou a publicação de portarias prevendo cuidados específicos para suas demandas. No entanto, muito do prometido não saiu do papel. As portarias foram publicadas nos últimos dois anos e estão, de acordo com o Ministério da Saúde, sendo implementadas. Sobre o documento referente à política genética clínica, que colaboraria com os portadores de doenças raras, a pasta destacou que já oferece no país 66 locais de atendimento clínico em genética e 175 laboratórios na área. Para Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, a cobertura é tímida e só alcança 20 cidades brasileiras, sobretudo as capitais. "Ainda é muito pouco", critica. O governo federal atribui as dificuldades de implantar a portaria ao escasso número de especialistas na área. Segundo o ministério, há apenas 156 geneticistas no país. Quanto à implementação da portaria que institui a política nacional de saúde da população negra, um dos temas de grande preocupação é o diagnóstico da anemia falciforme - ausente em grande parte dos estados. Em relação ao assunto, o Ministério da Saúde ressaltou que as redes estaduais precisam se organizar para serem habilitadas e que, apesar disso, os medicamentos são oferecidos pelo SUS. Sobre as cirurgias de mudança de sexo previstas em portaria de 2008, a pasta frisou que tem incentivado a oferta de procedimentos, mas que isso depende da iniciativa de cada estado. Embora a reportagem tenha insistido em entrevistar um representante do Ministério da Saúde, o órgão optou por responder os questionamentos por e-mail. Remédio de R$ 1 mil Lúcia Helena, mãe de Henrique e do pequeno Gabriel (à esquerda), que é portador de mucopolissacaridose tipo II: briga na Justiça para conseguir o medicamento do garotoRaras só no termo. Embora menos frequentes que patologias como câncer ou os males cardíacos, as cerca de 5 mil doenças classificadas como raras, das quais 80% têm origem genética, afetam de 6% a 8% da população mundial. Isso significa, no Brasil, pelo menos 10,8 milhões de pessoas. Vítimas do mau diagnóstico e da falta de atendimento, a esperança desses pacientes foi depositada na portaria do Ministério da Saúde que incluiu no Sistema Único de Saúde (SUS) os serviços de genética. Um ano e meio depois da norma, porém, os avanços são praticamente nulos, na avaliação de geneticistas, pacientes e familiares. Integrante por cinco anos da comissão que elaborou a portaria, o presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM), Salmo Raskin, está decepcionado com os poucos resultados. "É um trabalho de anos jogado no lixo. Enquanto isso, milhares de pessoas estão à espera dos medicamentos", reclama. O Ministério da Saúde justifica a não inclusão dos remédios para a maior parte das doenças raras devido à falta de estudos e protocolos seguros sobre a eficácia das substâncias. Portador de mucopolissacaridose tipo II, doença genética rara, o pequeno Gabriel Barbosa, 7 anos, é um desses brasileiros que aguardam o remédio idur sulfase para minimizar os efeitos da enfermidade. "Entrei na Justiça em 2008 para conseguir o remédio, que pode custar até US$ 1 mil (por ampola). Como me separei e foi meu marido quem deu entrada nos papéis, não sei como está o processo. Ele sumiu", lamenta Lúcia Helena, mãe do menino. Enquanto o remédio não chega, a família tenta levar uma vida normal. Fã do desenho Pica-pau, Gabriel não fala, tem deficiência auditiva e problemas no coração, no baço e no fígado, disfunções provocadas pela mucopolissacaridose. "Apesar de todos os problemas, sou abençoada por ter dois filhos. Estou conformada com a doença", diz a mãe. Henrique, 12 anos, irmão mais velho de Gabriel, ajuda Lúcia Helena a cuidar do caçula. "Ele é muito danado e só se acalma com o desenho do Pica-pau." Refém da burocracia Depois da difícil decisão de assumirem identidade visual e sexual opostas às de seu nascimento, mulheres e homens transexuais ainda enfrentam o burocrático processo imposto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para conseguirem a cirurgia de readequação sexual. Em vigor há dois anos, a portaria que institui a mudança de sexo na rede pública viabilizou apenas 27 procedimentos desse tipo (12 no Rio Grande do Sul, 10 no Rio de Janeiro e cinco em Goiás) - média de pouco mais de uma operação por mês. Atualmente, há pelo menos 500 brasileiros inscritos nas quatro instituições para fazerem a readequação. Para os homens transexuais - mulheres que desejam se transformar em homens -, a dificuldade é ainda maior. A portaria ministerial não autoriza o procedimento sob a alegação de que ainda é experimental. O argumento, no entanto, é rebatido por especialistas. "Essa operação é realizada há pelo menos 30 anos em outros países", diz o coordenador do programa de Transexualismo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Walter Koff. "Já acionamos o MPF (Ministério Público Federal) e conseguimos decisão judicial favorável. Esperamos, agora, que o CFM (Conselho Federal de Medicina) altere o texto de uma portaria sua e retire a palavra experimental para que o SUS possa finalmente oferecer o serviço." Coordenadora do projeto de Transexualismo do Hospital das Clínicas de Goiânia, Mariluza Silveira também critica a recusa do SUS. "Fico indignada com a situação, mas é uma portaria do CFM e temos de cumpri-la", explica. Sem o apoio do governo federal, de acordo com ela, a unidade goiana já fez oito procedimentos de readequação sexual em mulheres. Mariluza destaca ainda que, após as cirurgias, mesmo em homens, o SUS vem com mais burocracia, ao exigir os documentos originais dos pacientes para reembolsar o hospital. "É muito contraditório. O ministério recomenda o uso do nome social do transexual, porém, na hora de pagar as cirurgias, querem os registros originais. Muitos já entregaram suas identidades a cartórios ou já se desfizeram do seu passado", critica. Cantora de black music, Samantha Correia, 24 anos, está pronta há quase dois para a cirurgia de mudança de sexo masculino para o feminino. Desde os 18 ela frequenta um grupo de transexuais do Hospital Universitário de Brasília (HUB). "Passei pela avaliação psicológica, fiz exames e continuo tomando hormônios enquanto aguardo a operação. Espero que seja ainda este ano". Apesar da esperança, Samantha sabe que o sonho pode demorar. "Minha cirurgia deve ser feita em Goiânia, mas nenhum médico assinou ainda o prontuário para dar seguimento ao processo. É um descaso", desabafa. Trajetória complicada Pelo menos 10 crianças nascem por dia no Brasil com anemia falciforme, uma doença grave, caracterizada pela alteração dos glóbulos vermelhos, que atinge predominantemente a população negra. A cor da pele, no entanto, não determina o futuro das pessoas acometidas pelo mal, mas sim o local onde elas moram. É que passados nove anos que o Ministério da Saúde implementou o Programa de Triagem Neonatal, mais conhecido como teste do pezinho, apenas 16 estados oferecem o serviço para diagnosticar a anemia falciforme. Depois de conhecer a própria condição, os doentes enfrentam outra via-crúcis para conseguir atendimento adequado. Nos locais sem assistência, a mortalidade vai de 25% a 30% nos primeiros cinco anos de vida. Com atendimento adequado, o índice cai para 2%. Andréia Fernanda Zuquim pode ser considerar uma sobrevivente. Moradora de Ji-Paraná, em Rondônia, a universitária de 27 anos passou praticamente a vida inteira sendo tratada de forma errada por médicos, que diagnosticavam suas crises de dor intensa, acompanhadas por inchaços nas articulações, dormências e paralisações, como sintomas das mais variadas doenças. Depois de ir a Curitiba por conta própria, em 2007, a fim de entender o que, afinal, tinha, as dificuldades não terminaram. Há menos de 15 dias, na mais recente crise, Andréia ouviu da médica de Ji-Paraná que não poderia atendê-la. "Ela foi até sincera, disse: 'Eu não coloco a mão em você porque não sei tratar o que você tem'", lembra a jovem. O jeito foi viajar seis horas até a capital, Porto Velho. "Isso porque Ji-Paraná é a segunda cidade do estado, grande em termos de estrutura, mas sem um hematologista sequer", lamenta a moça. Presidente da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doenças Falciformes, Altair Lira questiona a complacência do governo. "Por que o Ministério da Saúde não cobra dos gestores o teste do pezinho, vital para 3,5 mil nascidos vivos anualmente?" Pelo pezinho Acre, Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará e Paraná são as unidades da Federação que diagnosticam anemia falciforme pelo teste do pezinho, segundo as regras do Ministério da Saúde. O Distrito Federal, por exemplo, embora ofereça o exame, ainda não tem um laboratório de biologia molecular, que é um dos pré-requisitos do governo federal para reconhecer a efetiva implementação do programa em um estado.

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