Brasil

Nos primeiros dias em Londres, dá para perceber como foi difícil para o Jean Charles iniciar sua vida no exterior

postado em 23/07/2010 07:00
Londres ; Quando o mineiro Jean Charles de Menezes desembarcou em Londres, em março de 2002, o inverno estava perto do fim e, com ele, ia embora o desalento que toma conta da maioria dos ingleses quando estão submetidos a apenas oito horas diárias de claridade, entre 8h e 16h. O brasileiro tinha dinheiro para pagar apenas um mês de aluguel e buscava, a qualquer custo, uma forma de sustento. ;O primeiro ano foi difícil, ele nem dominava a língua. Lavou prato em restaurante, fez cleaning (limpeza), lavou carros;, lembrou a prima Patrícia Armani. A oferta de trabalho na cidade era boa, tanto que nos meses seguintes Jean convenceria Patrícia e os primos a seguirem o seu caminho. Hoje, oito anos depois, arranjar trabalho em Londres não é mais uma questão de estalar os dedos. A crise econômica ainda assombra os ingleses e, quando isso acontece, o excesso de mão de obra estrangeira volta a ser tratado como problema de Estado.

O texto carimbado pelo oficial de imigração em meu passaporte é bem claro: estou proibido de trabalhar durante meu período de permanência. A fiscalização do governo e a multa a quem emprega ilegalmente estrangeiros assusta comerciantes e donos de empresas. Vejo nos sites de busca de trabalho que mostrar o passaporte é pré-requisito para qualquer entrevista. A solução foi apelar para o jeitinho brasileiro que levo na bagagem, com a camisa da Seleção, um saco de feijão e minha cachaça.

;O cara que faz sanduíches para mim está precisando de gente. Todos os funcionários dele deram no pé ontem porque rolou um boato de que o Home Office (departamento de fiscalização da imigração) ia baixar por lá;, me contou um amigo brasileiro, que vende sanduíches em escritórios. ;O cara é português, aparece na loja dele;, completou. Comprei um telefone pré-pago e escrevi meu número num currículo de mentira, que fiz às pressas. Adeus jornalismo. No papel, que entreguei ao português, adicionei outros tópicos ao meu histórico de registro profissional: auxiliar de cozinha, vendedor em lojas e barman. Nem uma linha sobre a condição do meu visto no país. Minha estratégia era enrolar o assunto até onde fosse possível. O português pegou o currículo e prometeu uma resposta que nunca veio.

Em uma gráfica a dois quarteirões da casa na qual aluguei um quarto, em Islington, no Norte de Londres, imprimi 30 cópias do currículo. Preenchi 12 cadastros de agências de emprego na internet. Durante sete dias, percorri restaurantes, bares e lojas no entorno, para não precisar comprar o passe do metrô. A estratégia não deu certo e foi preciso aumentar o raio da busca. Num sábado, 13 dias depois de minha chegada, recebi a ligação de Steve, chefe de cozinha do pub Marquess of Anglesey, em Convent Garden, uma das regiões mais turísticas (e, por isso, sempre cheia) de Londres. Ele precisava de um kitchen porter, cargo de quem lava pratos e limpa a cozinha de restaurantes e bares, uma espécie de faz-tudo. Ele viu meu currículo na internet, me chamou para uma conversa no início da tarde de domingo.

;O trabalho é pesado, preciso de alguém com agilidade;, avisou. O salário prometido era de 8 libras (R$ 24) por hora. Steve me emprestou uma camisa e um avental listrado e mandou começar. Enquanto coordenava a cozinha, pediu a um auxiliar que me explicasse o serviço. ;Você não precisa esfregar os pratos, limpar demais. Tira o grosso da sujeira, põe o prato no lavador de louça, seca e guarda;, resumiu. Apenas cinco pessoas trabalhavam na cozinha, número reduzido para um pub que também é restaurante e funciona nos dois andares de um prédio de esquina. ;Quando está muito cheio, a coisa fica apertada;, sinalizou. Comecei a lavar a louça limpando a sujeira com cuidado, como fazemos, em geral, no Brasil. A cada 10 pratos que lavava, 20 apareciam em minha bancada. ;Se você continuar assim, não vai dar conta nos dias cheios;, observou o auxiliar.

Na bancada se acumulavam panelas, facas, potes de molho de sanduíche, tabuleiros incrustados de sujeira. Não havia trégua. As garçonetes entravam cheirosas e sorridentes na cozinha para despejar dezenas de copos e pratos ao meu lado. Quando não havia espaço, punham até no chão. Optei pelo método de limpeza a jato, torcendo para que, nas horas seguintes, nenhum cliente reclamasse que seu prato de carne com batatas estava com gosto de peixe. A proporção de 10 para 20 virou 10 para 12. O auxiliar me explicou que, além de inverter essa proporção, também era minha função recolher o lixo, varrer a cozinha e passar um pano de 30 em 30 minutos. Quando saía quente das pias, a água na Inglaterra parecia corroer as mãos. Mas não dava tempo nem de sentir dor.

Panelão

Perdi quase 10 minutos tentando limpar a gordura de uma panela em que, acredito, foi preparada comida suficiente para 90 pessoas. Fiquei assustado quando percebi que havia cumprido sete horas de trabalho. Pouco antes de ir embora, fiz ao cozinheiro, com sotaque do leste europeu, o estranho pedido de tirar uma foto minha trabalhando. ;Essa vai estar amanhã na capa do The Sun;, ele brincou, referindo-se ao tabloide inglês. Ao fim, perguntei ao chefe da cozinha como fui. ;Not so bad (nem tão mal);, respondeu, prometendo ligar para combinar o horário de trabalho do dia seguinte. Meu telefone não tocou.

ENTENDA A SÉRIE
Desde ontem o Estado de Minas/Correio Braziliense refaz o caminho percorrido pelo brasileiro Jean Charles de Menezes, assassinado pela polícia de Londres há cinco anos. Durante 40 dias, o repórter vivenciou os riscos de uma vida na ilegalidade, sentiu as agruras da busca por emprego, conheceu de perto histórias de sucesso e colheu relatos de decepção. A cada dia, um novo capítulo da saga será publicado.

Sabor brasileiro

O ritmo de trabalho é frenético na cozinha de um dos restaurantes mais movimentados de Convent Garden, bairro turístico do centro de LondresNa prateleira tem guaraná, farinha, chocolate, refrigerante, biscoito, revista, chinelo, goiabada, doce de leite, rapadura, livros e CDs. No cardápio, pão de queijo, mandioca frita, frango a passarinho, pastel frito, feijão tropeiro, moqueca de peixe e feijoada. Os restaurantes e bares tupiniquins em Londres amenizam a saudade gastronômica dos milhares que escolheram o Reino Unido para ganhar a vida. Vez ou outra, aparecem grupos de estrangeiros, levados por amigos brasileiros. Mas a nacionalidade da maioria absoluta é tupiniquim. Na Lanchonete Brasil, no norte de Londres, é possível se sentir um pouco mais perto de casa, pelo menos por alguns instantes, depois do trabalho. A novela brasileira na TV determina o horário de fechamento da casa de lanches.

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