Brasil

Na trilha de Jean Charles, um bico de R$ 126 para fritar hambúrguer durante sete horas

O trabalho foi em um dos maiores templos do futebol mundial

postado em 24/07/2010 07:00
Londres ; Ao refazer o caminho de Jean Charles, tento me colocar na pele de brasileiros que se aventuram em busca de uma vida melhor. Quase sempre, os primeiros dias são os mais difíceis. Desempregados, desenturmados, sem falar a língua direito. Nesse momento, penso: de que importa a opulência e a riqueza de detalhes do Big Ben, a elegância da London Eye, o vigor do Tâmisa, rio que cruza de leste a oeste a cidade onde museus, parques e pubs parecem brotar em cada esquina? Para esses compatriotas, que precisam pagar as contas e ainda sobrar algum trocado para enviar à família no Brasil, cada hora de descanso é uma hora perdida. No meu caso, o trabalho de lava-pratos não vingou. Ao completar duas semanas sem perspectiva, sinto que, no lugar deles, estaria realmente desesperado. O alento chega numa quarta-feira, em forma de texto, ao meu celular: ;Trabalho disponível em Wembley, no próximo sábado, 16h. Para confirmar, responda esta mensagem;.

Regina Faria acha graça nos sotaques da cozinha de Wembley

Na procura por emprego nas semanas anteriores, cadastrei meu currículo em 12 agências e apenas em uma deu resultado. Naquela quarta-feira, 16 dias depois da minha chegada na capital inglesa, a mensagem de texto que chegou em meu celular era da Berkeley Scott, que se apresenta como uma das maiores empresas de terceirização de serviços da Inglaterra. O trabalho em Wembley, durante o amistoso entre as seleções da Inglaterra e do México, era animador. Além de garantir uns trocados, pensava que teria a chance de conhecer um dos templos do futebol mundial sem pagar um tostão. O ingresso mais barato para a partida custava 40 libras (R$ 120), quase o mesmo valor que eu receberia por sete horas de trabalho no estádio. A expectativa era conseguir assistir a pelo menos um pedaço do jogo.

Um amigo brasileiro que já trabalhou no estádio me explicou: ;Leve uma carteira de identidade com foto e apareça por lá de calça e sapato pretos. Depois de descer do metrô, siga as placas;. Era bom saber que não precisaria apresentar passaporte. Saí para comprar uma calça preta na Primark, rede de lojas onde roupas básicas são vendidas a espantosos preços baixos. A calça custou quatro libras (R$ 12), três quartos de uma hora trabalhada.

Almoço apenas um sanduíche no metrô que segue em direção ao estádio. Quatro horas antes do jogo, poucos torcedores estão na estação de chegada. Um senhor de barba branca sobe a rampa de acesso aos portões de mãos dadas com uma criança com o uniforme da Inglaterra, em meio a uma multidão de homens que vestem calça e camisa social e levam o paletó no braço. A proporção é de nove negros para cada branco. Eles vão trabalhar como seguranças na partida. Será que ganham mais do que quem fica na lanchonete? Resolvo seguir as pessoas apenas de calça preta, como eu, porque não acho as tais placas de sinalização.

Torcedores ingleses fazem fila para comprar hambúrgueres e cerveja no intervalo do amistoso entre México e Inglaterra. O ritmo de trabalho na lanchonete do estádio londrino é frenético

Na fila da agência para registrar a chegada ao estádio, encontro africanos, indianos, paquistaneses, latino-americanos e coreanos, entre tantos outros com a nacionalidade traçada no rosto. Os mexicanos devem estar animados. Afinal, quando teriam uma chance igual de assistir a um jogo da sua seleção em Londres, ainda mais de graça? Os que vieram em grupos conversam animadamente, o tamanho da fila não os assusta. Chega minha vez de ser atendido. O funcionário da agência pega minha carteira de motorista brasileira e apenas anota o nome na ficha. Ganho duas pulseiras de papel para entrar no estádio. ;Enjoy it (aproveite);, ele balbucia, com cara de enfado.

Outra fila surge no caminho, novo cadastro para pegar a chave do armário do vestiário. Lá está meu uniforme: camiseta e boné azuis, com o símbolo do estádio grafado no peito e na aba. Todos os pertences pessoais devem ser mantidos em uma sacola de plástico lacrada. Não sei para onde ir, nem o que fazer. Um boliviano me explica que meu lugar de trabalho está escrito em uma das pulseiras no braço. ;Box 502;. Subo ao quinto andar e acho meu posto: uma das dezenas de lanchonetes nos corredores de acesso às arquibancadas. Daqui, nem eu nem qualquer mexicano conseguiremos assistir ao jogo. Inevitável sentimento de frustração.

Dois indianos que também vestem o uniforme azul explicam minha função: manter os copos de cerveja na boca da máquina sempre cheios e pôr as tortas de carne, de frango e vegetarianas no forno. Uma cartilha explica a temperatura em que devem estar as tortas na hora de tirar a embalagem plástica e dá outras orientações. Se a máquina de refrigerante não completar o copo, deve-se tirar outra bebida e comunicar o ocorrido ao chefe. A temperatura dos salgados deve ser observada de 23 em 23 minutos, não é permitido servir cerveja a menores de 18 anos, nem a pessoas aparentemente alcoolizadas.

Pergunto à loira de cabelos cacheados que está em um dos caixas, ao meu lado, de onde ela veio. ;Brasil;, ela responde. Luciana desembarcou em Londres pela primeira vez em 2002, mesmo ano em que chegou o mineiro Jean Charles de Menezes. Ficou dois anos. ;Com o dinheiro que juntei, paguei um curso de relações internacionais, mas nunca consegui emprego no Brasil;, reclama. Para levantar uma nova quantia, ela voltou no ano passado a Londres. ;Tenho cara de nova, mas sou mais velha, ninguém acredita. Fico aqui fazendo trabalho de menininha;, resmunga.

Nuvem de gordura
A uma hora da abertura dos portões, meus colegas de posto abastecem o forno com minipizzas e salgadinhos. Experimentam alguns, mas param quando chega o gerente. Ele decide que eu e o ugandense Steven, estudante de engenharia aeroespacial que trabalha ao meu lado, devemos reforçar o time da cozinha de outra lanchonete, no mesmo andar. ;Ai, meu Deus, obrigada!”, grita, em bom português, a chefe de cozinha, a brasileira Regina Faria, de 50 anos. Aflita, porque precisava de ajuda para preparar hambúrgueres e o clássico fish and chips inglês (peixe com batatas), ela fica feliz quando digo que sou brasileiro e pergunta meu nome. Ao ouvir a resposta, dispara: ;Thiago era o nome do meu sobrinho, mas ele morreu! Mas isso não tem importância, vem cá, você põe oito carnes na chapa, fecha com a tampa, deixa que a máquina se abre sozinha; tire o hambúrguer, guarde nesta vasilha. As meninas botam no pão;.

A garota indiana e a menina da Mongólia cuidam do queijo e do pão. Descendente de italianos, Regina diz que nasceu no lugar errado, ao se referir ao Brasil. Falando em português e, por isso, entendida apenas por mim, ela faz troça com o sotaque dos estrangeiros. ;Olhe que coisa estranha esse povo falando inglês;, diz, apontando para a menina que, minutos depois, seria repreendida por ela. ;É uma anta mesmo, acabou o pão e ela não me avisa;, murmura. Em três horas, preparo 347 hambúrgueres. No fim do jogo somos obrigados a limpar a cozinha com água quente. Como devo receber desde o momento em que cheguei ao estádio, sete horas de trabalho rendem 42 libras (R$ 126). No fim, todas as partes do meu corpo fedem a gordura. Ao chegar em casa, entro no chuveiro e ali fico até os dedos das mãos ficarem enrugados.

Duas faces

O acaso põe sob o mesmo teto brasileiros de diferentes classes sociais e expectativas em relação à vida em Londres. Se uma legião ainda atravessa o Atlântico para trabalhar e juntar dinheiro a todo custo, como fez Jean Charles, há outra que, sob o pretexto de estudar inglês, percorre o mesmo caminho para apenas aproveitar a liberdade longe dos olhos da família. O preço do aluguel de um quarto não muda (60 libras ou R$ 180, em média, por semana). Mas o que muda, e muito, é a rotina que cada um constrói na cidade.

Em uma casa na região de Seven Sisters, no Norte de Londres, alguns acordam às 6h e trabalham até o fim da tarde, dividindo-se entre dois ou três empregos. Para a outra parte, de jovens entre 18 e 22 anos, quem manda é o prazer. ;A maioria do pessoal acorda às 11h, porque trabalha em pub à noite, mais pra curtir e juntar dinheiro pra dar rolé na Europa;, conta o jovem T., enquanto mexe no laptop no sofá da cozinha, de óculos escuros, dentro de casa. É manhã de terça-feira, ele ainda está de ressaca da noite anterior. ;No Brasil, chegar em casa depois de uma noitada de segunda, às 5h30, não é fácil quando você mora com os pais;, brinca o rapaz.

Perto de meio-dia, um amigo gaúcho acorda, vai para a cozinha. ;Bah, que horas vocês chegaram?;, ele pergunta. T. dá um sorriso maroto e pede para o amigo fazer silêncio, porque acha que a moradora do quarto ao lado ainda está dormindo com um cara que conheceu na noite anterior. ;Foi só o cara oferecer uma cervejinha. Quando vi, já tava voltando com a gente pra casa;, conta. T. está triste porque volta em agosto para o Brasil. ;Aqui não tem aquela história do Brasil, de você pegar uma menina de uma turma de 10, e depois não conseguir pegar mais ninguém da turma. É p... geral;.

Entenda a série

O Estado de Minas/Correio Braziliense refez, em Londres, o caminho do mineiro Jean Charles, executado pela polícia inglesa há cinco anos, e publica uma série com a experiência do repórter durante 40 dias na cidade europeia. Ele vivenciou os riscos de uma vida na ilegalidade, sentiu o drama na busca por emprego, colheu histórias de sucesso e relatos de decepção. A cada dia, um capítulo da saga será publicado.

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