postado em 25/07/2010 07:57
Thiago Herdy - Enviado especialLondres ; Três semanas depois da chegada em Londres para refazer o caminho de Jean Charles, ainda não consegui emprego fixo. Sou barrado nas entrevistas por causa do visto de turista. Peço ajuda a um amigo brasileiro e ele sugere: ;Ligue para o Flávio, ele resolve isso. Transforma você em italiano ou português, é só escolher;.
Depois dos atentados terroristas e da pressão da opinião pública, as políticas de imigração inglesas ficaram mais restritivas e os critérios de concessão de visto foram reformulados. Como não há mais carimbo capaz de garantir a permanência no país por tanto tempo, os trabalhadores ilegais vêm adotando uma outra estratégia: forjar uma nova nacionalidade. Para um cidadão europeu, basta mostrar a carteira de identidade ao empregador para ser contratado. Como preciso de um trabalho fixo, resolvo ligar para o Flávio, como havia sugerido meu amigo. Com evidente sotaque paulista e muita simpatia, ele atende me chamando de mano e pergunta de que documento eu preciso: ;Identidade ou passaporte?;
;Acho que a identidade já resolve;, respondo, sem muita segurança. Flávio combina um encontro para o dia seguinte. ;Vou te mandar uma mensagem com a estação onde a gente se encontra, na Picadilly Line. Traz uma foto, os dados eu pego com você na hora, certo? Você espera meia hora, eu te entrego ela pronta;. A facilidade com a qual a encomenda é oferecida me espanta. Pergunto qual seria a nacionalidade do documento. ;Português, italiano, qualquer um;, ele responde. ;Qual é o preço?;, quero saber. ;Cinquenta libras (R$ 150);. Por um valor equivalente ao salário de um dia de trabalho, em média, eu poderia comprar um documento que me permitiria trabalhar no Reino Unido por quanto tempo quisesse.
Pergunto a ele sobre a possibilidade de comprar um passaporte. Flávio responde que precisaria de mais tempo para entregar ; duas horas ; e que custaria 250 libras (R$ 750). ;É coisa sensível à luz ultravioleta, com folha de impressão de alta qualidade. Não imprimo com jato de tinta, imprimo a laser. Porque jato de tinta você mete no bolso, alguma coisa ele sua, ela mancha;, explica. Falo com ele sobre meu temor de ter problemas com a fiscalização. Não queria correr o risco de ficar um ano preso na Inglaterra e depois ser deportado para o Brasil. Sou orientado a não andar com o documento no bolso e mostrá-lo apenas uma vez, ao empregador. ;Depois você guarda;, explica Flávio. Quando desligo o telefone, chega uma mensagem de texto com a estação e o horário do nosso encontro do dia seguinte: Gloucester Road, 13h.
Saio de casa mais cedo para tirar uma foto 3 x 4 e chego 20 minutos antes na estação. Ligo para dizer que o aguardo em uma lanchonete em frente. ;Tava dormindo, aguenta só um pouquinho que chego em cinco minutos;, ele responde. Se estará aqui tão rápido, certamente ele mora por perto. A estação de Gloucester Road fica em Kensington e Chelsea, uma das regiões mais caras e sofisticadas de Londres. Ele não demora para aparecer. Usando óculos escuros, reclama do calor quando o verão se anuncia. Pega minha foto, pergunta o meu nome, data de nascimento, nome dos meus pais e altura. ;Altura?;, estranho. ;Sim, documento português tem altura;, ele explica, rindo. Flávio pede para eu esperar ;30 minutinhos;, eu digo que o aguardo na lanchonete.
Em pouco tempo ele volta com meu documento impresso, plastificado e com um carimbo em alto relevo. ;Não olha muito agora, porque tem polícia do outro lado da rua;, ele me alerta, apontando para o outro lado da vitrine. Quando os policiais saem, ele me mostra os detalhes da carteira. ;É igualzinha à minha, tenho cidadania portuguesa;, ele conta. Pergunto há quanto tempo ele estava em Londres. ;Sete anos, mas já fui deportado três vezes. Vou e volto;. ;Mas, como?;, quero saber. ;Ah, fazia uns esquemas, né? Pegava documento de outra pessoa, trocava a foto, e vinha. Da última vez encheu o saco, eu tinha direito à cidadania, corri atrás e tirei;.
Hoje ele vive em uma das zonas mais luxuosas da cidade, pagando um aluguel semanal de 400 libras (R$ 1,2 mil). Trocou o carro na semana passada, mas desconversou quando perguntei qual o modelo. Desde quando desembarcou em Londres pela primeira vez, há sete anos, trabalha com falsificação de documentos. ;Fui conhecendo, caí na malandragem, né?;, explica. Perguntado sobre quantas carteiras ele produz diariamente, o brasileiro responde genericamente: ; Muitas;. Ele diz atender apenas pessoas com indicação, mas esquece que não citei o nome de qualquer pessoa quando telefonei. Depois que eu pago as 50 libras, nos despedimos e ele vai embora andando, tranquilamente. Volto para casa pensando em como fazer para incorporar um sotaque português à fala.
Diálogos proibidos
Repórter: Olha, eu preciso de documento só para poder trabalhar.
Flávio: Você já sabe o que você precisa já, se é identidade, passaporte, o que você vai precisar?
Repórter: Eu acho que a identidade resolve.
Flávio: Então você tem como encontrar comigo amanhã?
Repórter: Pode ser amanhã, como a gente se encontra?
Flávio: Olha, você faz o seguinte, a linha é a Picadilly Line, você sabe qual que é?
Repórter: Tô ligado...
Flávio: Então você vai pegar essa linha e vai vir até a estação de Gloucester Road. (;) Aí você traz uma foto, os dados eu pego com você na hora. Você espera meia hora, eu te entrego pronta.
Repórter: Meia hora, só?
Flávio: É rapidinho.
(;)
Repórter: E quanto que é?
Flávio: 50 (libras, R$ 150).
Repórter: Pago na hora?
Flávio: Paga na hora (;)
Repórter: Passaporte é mais complicado?
Flávio: Não, passaporte demora duas horas para te entregar.
Repórter: E quanto que custa?
Flávio: 250 (libras, o equivalente a R$ 750)
União de mentira
No casamento de L. e F. sobram padrinhos, troca de alianças e champanhe. Mas falta sinceridade. Para aposentar o passaporte falso e ganhar livre acesso à Inglaterra, L., gay, pagou R$ 20 mil a F., heterossexual, para ser seu marido no papel. A união de mentira foi oficializada no último mês, em um cartório na Grande Londres. ;Por ser gay, o casamento aqui é mais fácil, porque eles temem ser acusados de preconceito;, conta L. Ele manterá em sua casa fotos, objetos e roupas do suposto marido, para provar que estão juntos caso alguém os denuncie ao governo.
L. pagou pela cidadania europeia para não viver mais o pesadelo dos últimos meses. No início do ano ele teve um desentendimento com um vizinho e recebeu e-mails em que ele ameaçava denunciá-lo. Foi obrigado a mudar de endereço. O problema se repetiu logo depois, quando se tornou sócio de uma pessoa que também sabia de sua condição irregular. ;Ela queria me manter naquelas condições, ;você trabalha para mim barato, senão...;;, conta L. Até amigo dele já foi deportado, em caso semelhante, por causa de outra pessoa que sabia de sua condição ilegal e queria roubar o emprego alheio.
Ele lamenta constatar que, muitas vezes, problemas do tipo ocorrem entre compatriotas. ;Uma coisa que eu aprendi foi a tomar cuidado com os próprios brasileiros. Às vezes, são eles que atrapalham você e não era para ser assim. A gente tinha que se juntar aqui, para tentar vencer;. Depois do casamento de business (negócio) ; forma como os brasileiros nomeiam a união forjada ; L. espera ter paz para voltar a ganhar dinheiro e viver a vida na cidade que tanto gosta.