Brasil

Mãe de Jean Charles se recusa a absolver assasino de seu filho

Dois anos depois de ouvir o pedido de desculpas de um dos matadores do seu filho, Maria Otoni se recusa a absolvê-lo. Ela e o marido desconversam quando o assunto é indenização

postado em 28/07/2010 09:28
Gonzaga (MG) ; Cara a cara com o homem que matou seu filho pensando que ele era um terrorista, dona Maria Otoni de Menezes, 65 anos, assistiu a um choro aflito e um pedido de desculpas. ;Sou educada, falei ;tudo bem, vou desculpar;. Mas pensava comigo: a voz do meu filho, cês não deram mais.;

Dois anos depois de ouvir o pedido de desculpas de um dos matadores do seu filho, Maria Otoni se recusa a absolvê-lo. Ela e o marido desconversam quando o assunto é indenizaçãoO encontro de dona Maria Otoni de Menezes com os dois homens que atiraram em Jean Charles de Menezes ocorreu durante o julgamento público do crime, pedido pela família e realizado no segundo semestre de 2008, três anos depois do assassinato. Escondidos dos curiosos e da imprensa por uma cortina, os atiradores prestaram depoimento sob os olhos da mãe do mineiro, do irmão dele e dos primos, únicos autorizados a acompanhar o rito ao lado dos jurados. Os policiais eram identificados pelos codinomes Charlie 1 e Charlie 2, porque seus nomes não podiam ser divulgados. ;Um deles foi arrogante, disse algo do tipo ;estou cumprindo ordens, não devo satisfação a ninguém;. O outro chorou. Falou que a culpa era toda dele, que ia levar isso para o resto da vida e pediu perdão à mãe do Jean;, conta Patrícia Armani, prima do jovem assassinado. Ela diz que ficou com pena. Outro primo, Alex Pereira, pensa que as lágrimas não foram sinceras, mas estratégicas.

Emocionada com o pedido, Maria Otoni também chorou e foi retirada da sala. ;Imagine se eu vou e acabo com ;ocê;, ;ranco; seu sangue, arrebento seu chão fora. Depois, vou lá, te abraço e peço perdão? É difícil, não é assim que funciona. O erro deles não tem perdão;, diz a mulher, cinco anos depois do assassinato do filho. Para ela, tão traumático quanto a morte do rapaz foi ter que assistir várias vezes aos vídeos que mostravam Jean andando ;libertamente;, sem saber que era perseguido pela polícia. Ver um manequim ser vestido na sua frente, no tribunal, com a jaqueta que o filho usava no dia do crime, ainda suja de sangue, também não foi fácil. ;Aquilo me deixou com muito transtorno, pensei que minha memória não ia voltar mais. Fiquei sem nem saber fazer comida, aquele troço na cabeça;, conta.

Mesmo decepcionada pela falta de punição para aquela que avalia como a maior responsável pela ação desastrada ; Cressida Dick, a comandante da operação policial ;, Maria Otoni ainda se sente grata pelo apoio que recebeu de cidadãos ingleses quando esteve em Londres. Ela não se esquece do fim de semana que passou na casa de campo de um dos advogados do caso, em uma cidade perto da capital. ;A casa da mulher era chique, meu filho. Embaixo nem era muita coisa, mas, em cima, tudo ;glapete; (carpete) branco. Para subir naquele trem tinha que deixar o sapato cá embaixo, o pé tinha que tá muito limpo. Mandaram eu escolher a cama onde ia deitar. Eu tive escolha! Ninguém nunca fez isso comigo. Pensei, tô importante aqui, meu Deus do Céu.;

Na última semana, em sua casa, na zona rural de Gonzaga, no Vale do Rio Doce, Maria contou que, na passagem por Londres, não ficou fã da comida inglesa. ;Vai fazer frango, eles tacam doce;, lembrou, incrédula. Mas, na casa de campo dos amigos ingleses, a história foi diferente. ;Tinha até peito de pato assado, cortado em rodela, assim, ó, tipo uma mortadela. Eles punham as comidas tudo no seu prato; pegam um negócio gostoso demais e põem por cima, não sei o quê que é. Depois veio sobremesa, bolo, acho que eles queriam matar a gente de tanto comer.; No dia seguinte, ela foi convidada para fazer uma caminhada na mata ao redor da casa de campo. ;Tive até medo de bicho, cê acredita? Medo de leão, tinha uns rastro lá, gigantão...;

; Aquilo era cachorro com pata grande ; interrompeu o marido, Matozinho Otoni da Silva, que não viajou com a mulher.

; Nada, Tozinho, era mata que vai daqui pra Valadares ; comparou. Num é tiquinho de mata não, menino, pode ter bicho ali, né? Nós ainda perguntamo pro rapaz, ;aqui tem bicho feroz?; Ele disse, assim, ;às vezes passa um por aí;. Ave Maria santíssima! ; riu.

Antes de ir embora, os donos da casa disseram que gostariam de visitar a mãe de Jean Charles durante uma viagem ao Brasil, em breve. ;Eu falei, vixi meu Deus do Céu, vem que ocê vai achar uma cama igual a (que) ocê me deu, praga!”, lembrou, dando gargalhada. ;Pensei, né? Não pude falar. Esse povo tudo do estrangeiro é muito diferente de nós.; Maria não tem vontade de voltar à Inglaterra. ;Lá eu tive que escolher minha cama. Mas a cama da gente é a melhor, bobo. Por muito inferior que ela seja, é a que ocê gosta;, resumiu.

Dinheiro
O casal desconversa quando perguntado sobre a indenização de 100 mil libras (cerca de R$ 300 mil), que a polícia inglesa teria pago à família pelo assassinato do filho. ;A gente não recebeu não, meu filho. Falaram tanto sobre o dinheiro que nós ia ganhar, que eu tive medo de morrer fora da hora. Sabe esse morrer sem ver nada?;, perguntou, referindo-se à especulação sobre o valor da indenização, avaliada entre R$ 1 milhão e R$ 2 milhões, logo depois do episódio. ;Imagine se uma pessoa agride ocê pra pegar um dinheiro que ocê nunca pensou em ter em vida? Era trem que Deus me livre; eu não quero isso;, disse.

Matozinho conta que comprou uma casa em Gonzaga. ;Com o tempo, é capaz de a gente ir pra lá, porque tamo acabando de ficar velho, né?; Mas, o pai de Jean ainda espera o acerto dos advogados com a polícia de Londres, para receber todo o dinheiro prometido e comprar mais umas terras no vale. ;É pouquinha coisa, não é nada.; O pagamento da indenização é motivo de confusão na família. ;Gente quando arruma dinheiro não lembra de ninguém que tá precisando, esquece de tudo;, reclama a sobrinha de Matozinho, Lúcia Alves Pereira, de 53 anos. Ela diz ter pedido ao tio dinheiro emprestado para pagar uma conta de luz e ele teria recusado. Matozinho e Maria negam haver discórdia.

Na sala da casa onde moram há um quadro com a imagem de Jean feita pelos organizadores de um movimento que lutou pela punição dos acusados do assassinato. O pai conta que a saudade não passa. ;Nem gosto de ;alembrar; muito dele mais, não. Tem dia que vou lá pra cima olhar uma criaçãozinha que tenho, sento no lugar que ele passava, me ajudando a fazer as coisas. A gente recorda e dá vontade até de chorar.; Maria sente algo parecido: ;Tem noite que não durmo, fico pensando que o menino tá chegando, que tá vindo tomar uma bença, que tá conversando comigo. E aquilo ali, eu não tenho sono. Aquilo ali me mata;.

Entenda a série

O Estado de Minas/ Correio refez, em Londres, o caminho do mineiro Jean Charles, executado pela polícia inglesa há cinco anos, e desde a semana passada publicou uma série com a experiência do repórter durante 40 dias na cidade europeia. Ele vivenciou os riscos de uma vida na ilegalidade, sentiu o drama na busca por emprego, colheu histórias de sucesso e relatos de decepção.

Janey Costa

A tragédia que ceifou a vida do mineiro Jean Charles de Menezes já foi contada de todas as formas possíveis, foi transformada em filme, ganhou manchetes do noticiário internacional e manchou de sangue inocente a até então intocada reputação da infalível Scotland Yard, a polícia britânica que é orgulho de sua majestade, e expôs também a face de um novo e terrível inimigo criado pelo terrorismo internacional: o medo e a paranoia.

Sem saber o que o destino lhe reservava naquele 22 de julho, Jean acordou, vestiu-se e saiu apressado para mais um dia em sua vida. Tomou o ônibus, o metrô, leu as notícias do dia e morreu, sem saber o porquê de tamanha violência. Seguido por agentes contaminados pelo medo e pela paranoia disseminada pelo terror, e vítima de uma sucessão de erros da polícia londrina, Jean deixou a vida para virar estatística e notícia.

Ao refazer os passos do brasileiro, o Correio/Estado de Minas humanizou sua história, convidou a todos nós, que acompanhamos a tocante narrativa de Thiago Herdy, a cruzarmos o Atlântico e vivermos as agruras, as lutas e vitórias dos milhares, que, como fizeram os grandes navegantes do passado, que deixam sua terra em busca de um sonho. O repórter nos emprestou seus olhos, seus ouvidos e nos levou a viver o sonho do imigrante. Ao fazer isso, fez com que nós fôssemos, por alguns momentos, Jean Charles. Assim, no quinto aniversário de sua morte, o jovem mineiro, generosamente, divide essa homenagem com todos os bravos homens e mulheres que partem para lutar, em terras estrangeiras, pelo sonho de dias melhores.

Para encerrar a série, não recontamos a história já tão repetida em várias línguas e formatos. Isso Thiago Herdy, com maestria e poesia, já fez na primeira matéria da série. Assim, escolhemos uma velha canção dos Beatles, In my life (Em minha vida), para contar em quadrinhos o que teria sido mais um dia na vida de Jean Charles.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação