Brasil

Policiais se envolvem em discussões tolas de trânsito e usam o revólver para resolver a situação

O resultado, quase sempre, é desastroso

postado em 03/08/2010 07:00
O porte de armas assegurado por lei e a fúria num trânsito caótico fazem de policiais militares e civis os principais agressores em brigas de trânsito que terminam em morte. Dos 32 casos levantados pelo Correio, em todo o país, pelo menos sete ; ou seja, mais de um quinto, ou 21,8% ; tiveram o envolvimento de policiais. Os revólveres de uso exclusivo das polícias nos ataques de fúria são as primeiras armas encontradas por esses motoristas.

Caso recente, uma briga de trânsito envolvendo um policial militar e um juiz em Salvador (BA), no último 10 de julho, acabou em morte. O magistrado Carlos Alessandro Pitágoras Ribeiro, 38 anos, foi assassinado com um tiro à queima-roupa pelo policial Daniel dos Santos Soares, conforme declaração do próprio militar. O policial deu uma fechada no juiz, que já teria descido do carro com uma pistola nove milímetros. Depois, o militar disparou no juiz.

No Rio de Janeiro, em 2006, um policial militar e um policial federal trocaram tiros após uma batida entre os carros dos dois. Mas foi em Goiânia (GO) que, no mesmo ano, uma briga de trânsito mobilizou um promotor de justiça e um soldado da Polícia Militar (PM), filho do promotor. Os dois se uniram para agredir e tentar matar um motociclista envolvido na briga, segundo a denúncia do Ministério Público (MP) de Goiás. O caso, que provocou diversas ações na Justiça e ameaças dos dois lados, está longe do fim.

O primeiro lance dessa briga ocorreu entre o promotor de justiça Rodaney Ferreira Gandra e o motociclista Marcos Antônio Maciel Lemos, em 18 de junho de 2006. Os dois se envolveram num pequeno acidente de trânsito, e Marcos Antônio teria se ferido numa briga com o promotor.

Rodaney decidiu ligar para o filho, o soldado Leonardo Bezerra de Lima Gandra, que compareceu ao local da briga como policial militar. A ocorrência já havia sido registrada pela polícia, mas Leonardo esteve na Marginal Botafogo ; a via expressa mais movimentada de Goiânia ; e algemou Marcos Antônio. Antes, o policial retirou o pai da cena do crime, no próprio carro da Polícia Militar (PM).

Mesmo algemado, Marcos Antônio tentou fugir. Leonardo o perseguiu e disparou duas vezes contra o motociclista. As balas atingiram as pernas de Marcos Antônio. A 100m dali, um parente do motociclista de nome José (e que terá o sobrenome preservado) percebeu os disparos contra o rapaz. ;O que é isso?;, questionou na ocasião. ;Estão atirando nele;, reponderam.

Marcos Antônio mudou-se de Goiânia logo após a tentativa de assassinato. Não voltou à cidade desde então. ;Ele tem dois irmãos da polícia, que tiraram ele daqui de avião. Não quer nem saber de voltar, foi um trauma;, conta José. Primeiro, Marcos Antônio e a mulher foram para uma pequena cidade da Bahia. Agora, o casal está em Tocantins.

Na Justiça, em razão do envolvimento de um policial militar, o processo não sai do lugar. Os autos foram remetidos ainda em 2006 à Auditoria Militar. Em junho deste ano, foi marcada audiência para instrução do processo. A data da audiência: 31 de outubro de 2011. O policial acusado de tentativa de homicídio chegou a entrar com um mandado de segurança contra a investigação aberta pela Gerência de Correições da PM goiana. A Justiça do estado não viu ;ilegalidades; no procedimento do comando da corporação.

Em Brasília
Doze anos atrás, um policial civil do Distrito Federal, armado, mesmo em horário de folga, atirou contra um motorista de ônibus em Ceilândia. O motivo, segundo a sentença que o condenou a 15 anos e seis meses de prisão, foi um ;desentendimento relativo a um simples acidente de trânsito;. O agressor, Francisco Marconi Cordeiro, conseguiu anular o primeiro julgamento e, no segundo, foi condenado, mas recorreu da sentença.

O Correio tentou falar com Francisco Marconi, mas ele não atendeu a reportagem. Seu advogado, Jason Barbosa de Faria, alega a tese da legítima defesa. Ele diz que o policial não foi expulso da corporação, mas se aposentou antes mesmo de o processo ser julgado.

Todos os policiais do Distrito Federal que têm porte de arma de fogo andam armados, até pela função que exercem, segundo o assessor de imprensa da PM do DF, tenente Márcio Silva Matos. ;Há várias orientações sobre como se portar com a arma. A forma como o policial se comporta na sua folga, com ou sem a arma, é particular de cada um;, disse.

A forma como o policial se comporta na sua folga, com ou sem a arma, é particular de cada um;
Tenente Márcio Matos, assessor da Polícia Militar do DF

Bate, recusa-se a pagar e atira para matar

Levar uma batida no carro e reclamar pelo conserto custou a vida do universitário André Ricardo Pires Barbosa, assassinado com um tiro na boca aos 29 anos de idade. O policial militar que bateu no seu carro, em Goiânia (GO), não aceitou a reclamação do estudante. Gleison Izaías Nunes abriu a porta do carro, tirou o revólver da perna e disparou por baixo do queixo de André.

O crime aconteceu há nove anos e, hoje, Gleison está em liberdade condicional. A liberdade já dura um ano e meio, e o Ministério Público (MP) de Goiás se manifestou pela suspensão da pena. Gleison foi condenado por homicídio qualificado, cometido por motivo fútil.

No dia em que esteve frente a frente com Gleison, André propôs que os dois fizessem um boletim de ocorrência e uma perícia sobre o pequeno acidente de trânsito. O policial se recusou. ;E aí, como é que vai ficar?;, perguntou André ao militar. ;De mim você não vai receber nada. Vai receber isso no inferno;, teria dito Gleison, segundos antes de disparar a arma contra o estudante universitário.

Os pais de André moravam nos Estados Unidos. Retornaram ao Brasil depois do assassinato do filho. ;O policial que matou meu filho estava bêbado e com o superior ao lado;, afirma o pai de André, o aposentado Manoel Pereira Barbosa, 72. Ele conta que o filho estava acompanhado da noiva e que parou o carro após ser atingido pelo carro guiado por Gleison. ;O carro rodou e foi parar na calçada.;

Quando recebeu o disparo na boca, André estava com os braços cruzados para trás, uma demonstração de que se rendeu, segundo o pai. O jovem era formado em dois cursos técnicos e concluiria no ano de sua morte o curso de engenharia civil. Depois da formatura, visitaria os pais nos Estados Unidos. Os pais e a mulher que era noiva de André movem, desde 2002, ações de indenização contra o estado de Goiás, uma tentativa de reparação por um crime cometido por um agente.

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