Carolina Mello
postado em 20/08/2010 07:05
Carolina MelloCarolina Khodr
Renata Mariz
A reforma do Código de Processo Penal (CPP), elaborada por uma comissão de respeitados juristas e atualmente em tramitação no Senado, receberá uma série de sugestões de emendas ; muitas com potencial para reacender discussões em torno de um tema naturalmente controverso. As recomendações, aprovadas em sessão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pedem o fim do juiz de garantia, a manutenção da audiência una, a impossibilidade de recursos para decisões internas do processo e a definição de prazo para inquéritos policiais, entre outras modificações importantes. A nota técnica da entidade, à qual o Correio teve acesso, menciona preocupação com a celeridade das ações judiciais, sem que isso signifique riscos das garantias individuais.
Valter Nunes da Silva Junior, conselheiro do CNJ, destaca que é preciso reformar alguns pontos da proposta para que se faça uma modificação consistente. ;As alterações devem ser sentidas no ritmo e na qualidade da prestação de serviços do Judiciário à população;, defende. As mudanças propostas, conforme o conselheiro, basearam-se muitas vezes na atual realidade do sistema. Caso da figura do juiz de garantia, que seria um magistrado incumbido da fase pré-processual, como quebra de escutas telefônicas ou sigilos telefônicos, enquanto o julgamento ficaria a cargo de outro juiz. ;No campo teórico, apoiamos a ideia. De fato, quem julga fica menos contaminado com a investigação. Mas 40% das varas estaduais de Justiça no Brasil funcionam com apenas um magistrado. Como colocar isso em prática?;, questiona Silva Junior.
O CNJ defende, ainda, a manutenção da audiência una, incorporada ao CPP em 2008. ;Essa foi uma mudança importantíssima que obriga o juiz a chegar mais preparado para a audiência, depois de estudar o processo. Dessa forma, ele pode sentenciar logo, sem precisar marcar diversas audiências com intervalos grandes de tempo. O problema é que muitos doutrinadores não entendem que a audiência una pode se desenrolar em dias consecutivos, porém será única. Agora querem acabar com essa conquista;, reclama o conselheiro do CNJ. Alberto Toron, criminalista e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, é favorável ao fim do procedimento uno. ;Assim o juiz terá mais tempo de, por exemplo, ouvir todos os envolvidos em um processo com muitas testemunhas;, defende.
Recurso
Já Romualdo Sanches Calvo Filho, presidente da Academia Paulista de Direito Criminal, considera positivo manter a audiência una. ;O juiz pode pedir, ao fim do procedimento, um prazo de 10 dias para se manifestar. Não vejo pressão nisso, acho importante para agilizar as ações e acabar com o cemitério de processos que temos atualmente;, diz. O criminalista também elogiou a proposta do CNJ de fixar em 360 dias, prorrogáveis por mais 360, o prazo para finalizar os inquéritos policiais. ;É um período bem razoável que servirá para a polícia empreender mais esforços. Hoje, o réu estando solto, o prazo de 30 dias fica sendo prorrogado indefinidamente;, observa Calvo Filho.
Em nome da agilidade, o CNJ também quer derrubar previsão do projeto original que possibilita o ajuizamento de recursos para toda e qualquer decisão interlocutória (manifestadas ao longo do processo, quando, por exemplo, o juiz determina uma prisão ou recebe a denúncia do Ministério Público). Hoje, se o recurso implica problemas no andamento do processo penal, não pode ser apresentado. A exceção está nos casos de prejuízo ao acusado, que pode ingressar com habeas corpus. ;Imagine se formos permitir recurso em todas as decisões interlocutórias, o processo não acabará nunca. Todo mundo vai interpor recurso o tempo inteiro;, diz o conselheiro do CNJ. A entidade também sugere que o tema das interceptações telefônicas seja regulado por lei específica. ;Estão tentando incluir isso no CPP, mas claro que não haverá como detalhar um assunto tão delicado;, afirma Silva Júnior.
O juiz pode pedir, ao fim do procedimento, um prazo de 10 dias para se manifestar. Não vejo pressão nisso, acho importante para agilizar as ações e acabar com o cemitério de processos que temos atualmente;
Romualdo Sanches Calvo Filho, presidente da Academia Paulista de Direito Criminal
Principais pontos
Em nota técnica, os conselheiros da entidade aprovaram emendas a serem apresentadas ao projeto de reforma do Código de Processo Penal (CPP). Veja quais são as questões mais importantes:
Fim do juiz de garantia
Prevista no texto atual sob análise do Senado, o juiz de garantia, que se encarregaria da fase pré-processual, enquanto um outro magistrado ficaria com o julgamento, tem o apoio do CNJ no campo teórico. Porém, na prática, devido ao número reduzido de juízes no país, os conselheiros querem a retirada do dispositivo do projeto de lei.
Manutenção da audiência una
Introduzida no CCP na reforma feita pelo Legislativo em 2008, a audiência una, que significa iniciar e terminar um processo, ainda que em dias consecutivos, de forma mais célere, corre o risco de ser enterrada pela proposta em debate. Para o CNJ, é imprescindível a manutenção da audiência una para agilizar o ritmo dos processos e imprimir uma forma de trabalho mais produtiva no Judiciário.
Sem recurso para decisões interlocutórias
No processo penal não cabe recurso contra as decisões interlocutórias (que não são as sentenças finais, mas decisões no decorrer do processo) quando pode haver prejuízo no andamento. A reforma que se discute no Congresso pretende abrir a possibilidade de recurso para todos os tipos de decisões interlocutórias. O CNJ é contra.
360 dias para inquéritos policiais
Em vez dos atuais 30 dias, prorrogáveis indefinidamente, o CNJ sugere que o inquérito policial possa durar 360 dias, podendo ser prorrogado por igual período. Ao fim desse período, o Ministério Público terá que fazer a denúncia ou arquivar. A medida visa impor limites de tempo ao trabalho policial e resguardar as pessoas investigadas, para que não fiquem indefinidamente sob alvo da polícia.
A dor que nem dez anos curam
São Paulo ; Dez anos depois da morte da jornalista Sandra Gomide, os pais da jovem ainda sofrem com a perda brusca da filha e outros problemas familiares desencadeados depois que a moça foi assassinada em um haras pelo jornalista Antônio Pimenta das Neves, em 20 de agosto de 2000, em São Paulo. Hoje, João Gomide, 72 anos, e Leonilda Gomide, 74, tocam uma rotina de hospitais e problemas familiares. O casal nem se importa se o assassino esteja solto ou preso. E nem sequer preparou uma missa para a filha. ;Queremos mais é cuidar da nossa saúde para viver os últimos dias em paz;, diz João.
Pimenta das Neves matou a sangue frio Sandra Gomide com dois tiros na nuca por não aceitar o fim do relacionamento, que ficou sob o mais absoluto sigilo por dois anos. Ambos eram jornalistas e ela era subordinada a ele. Pimenta foi julgado e condenado a 19 anos de prisão, mas a pena foi baixando graças a recursos até ser fixada em 15 anos. O jornalista, no entanto, conseguiu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) um benefício que o mantém solto até que seja julgado um último recurso que pede novo julgamento porque, como alega, ele foi condenado pela imprensa antes mesmo de enfrentar o Tribunal do Júri. Esse último recurso está na gaveta do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), e não tem data para julgamento. ;O assassino está solto porque a Justiça no Brasil é lenta;, justifica o advogado da família Gomide, Sergei Cobra Arbex.
Dona Leonilda nem sabe se o homem que matou a sua filha está preso ou solto. Sofrendo de transtorno bipolar e obesidade ; está com quase 100 quilos ;, ela passa o dia inteiro deitada em uma cama. Nas raras vezes em que se levanta, cai no chão porque as pernas fracas não suportam o peso do corpo. ;Hoje mesmo ela resolveu sair da cama e caiu. Tive de chamar dois vizinhos para me ajudarem a recolocá-la no lugar;, relata João Gomide.
Segundo médicos, as doenças de Leonilda e João decorrem das fortes emoções e do estresse pós-trauma. Um ano depois que Sandra morreu, a mãe, por exemplo, passou a frequentar clínicas psiquiátricas porque acordava no meio da noite dizendo que conversava com a filha mesmo depois de morta. ;A gente pensava que eram sonhos, mas ela se levantava da cama e andava pela casa como se estivesse acompanhada da filha;, relata o pai. Até hoje Leonilda diz que conversa com Sandra, principalmente se não tomar os remédios receitados pelo médico para controle da depressão e ansiedade.
Os problemas emocionais também comprometeram o humor do pai de Sandra. Familiares e amigos contam que ele era um homem animado e de bem com a vida. Depois que a filha foi assassinada, ele se fechou. Vendeu o sítio que tinha ao lado do haras onde Sandra foi morta e se desfez ainda de dois comércios. O filho mais velho, Milton Gomide, 44, entrou para uma seita religiosa e rompeu relações com os pais, alegando problemas de espiritualidade.
Pimenta Neves, 73 anos, é réu confesso. Foi julgado e condenado em primeira e segunda instâncias, mas continua livre. Leva uma vida discreta no interior paulista. Tem duas aposentadorias e recebe dividendos de uma previdência privada que, somados, chegam a R$ 50 mil mensais. Passa os dias lendo e navegando na internet. Reúne poucos amigos para jantares que ele mesmo prepara.
Hoje mesmo ela resolveu sair da cama e caiu. Tive de chamar dois vizinhos para me ajudarem a recolocá-la no lugar;
João Gomide, pai de Sandra Gomide, a respeito da mulher, que sofre de transtorno bipolar e obesidade
O número
19 anos
A pena inicial do jornalista Pimenta Neves já foi reduzida para 15 anos e ele aguarda novo julgamento em liberdade