postado em 05/09/2010 08:42
Jorge nasceu há dez dias, tem uma irmã de 9 anos e já está em casa. Já Bruno tem dois meses e meio de vida, um irmão adolescente e um quarto decorado, organizado cuidadosamente pela mãe. Amylee, por sua vez, nasceu miudinha, chegou a sofrer uma parada respiratória e precisou ficar na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) por 10 dias seguidos. A menina, filha única, se recuperou e, cinco meses após o nascimento, tem boa saúde, apesar da necessidade de acompanhamento médico. Os três bebês voltaram para casa pelas mãos da avó, do avô ou do pai. As mães morreram após o parto.O que silenciosamente se passa nas maternidades brasileiras ; em especial nas unidades que prestam atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ; converteu-se numa tragédia contínua, que não arrefece ao longo dos anos. As gestantes correm riscos reais de morte, num país que não conseguiu reduzir os índices de mortalidade materna na última década. Oficialmente, cerca de 1,5 mil mulheres morrem todos os anos no Brasil por complicações na gestação, no parto ou em até 42 dias após o nascimento do filho. É a quantidade de mortes registrada pelo Ministério da Saúde em 2009, mesmo número de registros em 1996, 13 anos atrás.
A redução da mortalidade materna é um dos objetivos de desenvolvimento do milênio (ODMs) acertados entre o Brasil e a Organização das Nações Unidas (ONU), a exemplo do que fizeram outros 190 países. A meta estabelecida é diminuir em três quartos a chamada razão da mortalidade materna, que é a proporção entre óbitos e 100 mil nascidos vivos, até 2015. O governo calculou que em 1990 essa razão era de 140 mortes de mulheres para cada 100 mil nascidos vivos. Nos próximos cinco anos, essa razão deve chegar a 35. Estamos longe: em 2007, foram registradas 75 mortes.
O mais provável é que o Brasil não consiga cumprir o ODM da mortalidade materna. É o objetivo mais difícil de ser atingido entre os oito estabelecidos, e provavelmente a meta fique pelo caminho, como reconhecem setores do governo e da própria ONU.
A gravidade do problema aparece em todos os dados oficiais da mortalidade materna no Brasil e, principalmente, na soma de tragédias particulares, enfrentadas por pais, avós e pequenos órfãos de mulheres que estiveram bem próximas de exercer a maternidade. A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) considera como tolerável uma taxa de mortalidade materna de 20 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos. O índice no Brasil é quase quatro vezes maior. A redução que o governo brasileiro sustenta ter provocado nos casos de mortalidade materna é controversa. Até porque há dados contraditórios dentro do próprio Ministério da Saúde.
Fator de ajuste
O último relatório sobre o acompanhamento do cumprimento dos ODMs no país foi divulgado em março deste ano e traz a informação sobre a redução pela metade da mortalidade materna no Brasil. Eram 140 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos em 1990 e 75 em 2007. Os números foram calculados pelo Ministério da Saúde. O próprio ministério, porém, tem outros dados. Segundo os dados da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (Ripsa), a taxa de mortalidade era de 51,6 em 1996 ; no relatório oficial sobre os ODMs, são 112,5 óbitos ;, cresceu ao longo dos anos e chegou a 77,2 em 2006.
A contradição é explicada pela aplicação de um fator de ajuste, que busca corrigir a subnotificação. Nos dados do relatório oficial sobre o cumprimento dos ODMs, esse fator teria sido de 2, ou seja, para cada morte registrada nos hospitais, outro óbito deixava de ser notificado, o que passou a ser corrigido pelo fator de ajuste. A Ripsa usou um fator de 1,4, calculado a partir de 2000. ;Não havia sistema de informação no Brasil em 1990. A razão de 140 mortes naquele ano não foi cabalística;, justifica o médico Adson França, do Ministério da Saúde, coordenador nacional do pacto pela redução da mortalidade materna e responsável pelo cumprimento dos ODMs na área de saúde.
Os números absolutos de óbitos maternos, atualizados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, mostram que a quantidade de mortes não diminuiu ao longo dos anos, mesmo a partir de 2004, quando as notificações passaram a ser obrigatórias e novas regras foram definidas para combater a mortalidade materna. É uma situação distinta do que ocorreu com a mortalidade infantil ; a taxa era de 53,7 óbitos por mil nascidos vivos em 1990 e caiu para 22,8 em 2008. A meta para 2015, de 17,9, muito provavelmente, será atingida.
Em números absolutos, as mortes de crianças com menos de um ano de idade caíram de 75 mil em 1996 para 41,1 mil no ano passado, segundo os dados do SIM. O Brasil já cumpriu as metas de redução da extrema pobreza e da fome, com sete anos de antecedência.
A permanência dos índices de mortalidade materna ao longo dos anos ; ao contrário do que acontece com a mortalidade infantil, a pobreza e a desnutrição ; é ainda mais grave porque entre 90% e 98% das mortes são evitáveis, segundo profissionais de saúde que atuam nos comitês de redução da mortalidade materna, ouvidos pelo Correio. A reportagem levantou 11 casos de mulheres que morreram no parto ou logo depois do nascimento dos filhos e, em quase todos, familiares relatam descaso no atendimento médico, peregrinação por unidades de saúde ou diagnósticos equivocados sobre a gravidade do estado de saúde das pacientes.
Os casos de mortalidade materna são tratados com discrição pelo Ministério da Saúde e sob o mais absoluto sigilo pelos comitês estaduais e municipais de redução da mortalidade. Mesmo assim, o Correio identificou, no Distrito Federal, em Curitiba (PR), em Recife (PE), em Porto Alegre (RS) e em João Pessoa (PB), mulheres que morreram pouco depois de ser mães. Essas histórias serão contadas em uma série de três reportagens.