Brasil

Apesar do aumento de doadores, espera de pacientes por órgãos ainda é longa

postado em 13/09/2010 08:46
Placar apertado mas vitorioso para aqueles cuja única chance de cura está em um transplante. Foram 809 ;não; contra 963 ;sim; vindos de famílias questionadas, no primeiro semestre deste ano, sobre a vontade de doar todos os órgãos de um parente que havia acabado de falecer. O número poderia ser bem maior, reconhece Alberto Beltrame, secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde. ;Embora a lei diga que a notificação da morte encefálica antes da parada cardíaca, determinante para a captação múltipla, é obrigatória, só registramos 50% dos óbitos nessas condições no Brasil. Ainda assim, estamos andando a passos largos na área dos transplantes;, afirma.

Falta de comissões dentro dos hospitais voltadas para a área, desinformação por parte da população e a pouca agilidade do sistema que interliga as instituições envolvidas são fatores que atrapalham o atendimento das cerca de 65 mil pessoas atualmente registradas no cadastro nacional à espera de um órgão.

A maior demanda é por rins e córneas ; representando cerca de 85% dos órgãos e tecidos esperados. Antonio Augusto dos Santos aguarda um rim há oito anos. Seus órgãos apresentaram problema quando ele passou por um distúrbio nervoso, ao ser assaltado, com a mulher e a filha, em casa. ;Morávamos em Águas Lindas (GO), ficamos amarrados, foi terrível. Minha pressão subiu tanto que tive um infarto e meus rins pararam;, conta. Quatro anos depois de fazer acompanhamento ambulatorial, teve que começar a hemodiálise. Por duas vezes, o potiguar de Caraúbas pensou que conseguiria o transplante. Chegando ao hospital, foi informado de que não seria possível. ;A gente fica tão esperançoso, é difícil voltar para casa;, diz ele, atualmente morador do Setor de Chácaras de Ceilândia.

São muitos os problemas que inviabilizam cirurgias como a de Antonio, 46 anos. Dos 3.421 potenciais doadores identificados nos seis primeiros meses de 2010, 15 não tiveram a doação efetivada por falta de infraestrutura adequada e 657, por terem tido parada respiratória antes do processo ser efetivado, segundo dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). Presidente da entidade, Ben-Hur Ferraz Neto aponta a necessidade da implantação de uma efetiva política de doação de órgãos nos estados. ;Especialmente no que diz respeito à formação de recursos humanos, de profissionais que saibam diagnosticar morte encefálica, de equipes que façam a abordagem da família e, claro, de campanhas esclarecedoras;, opina o médico.

Daniela Salomão, coordenadora da Central de Órgãos do Distrito Federal, vê as mesmas necessidades na capital do país, primeira no ranking de transplantes de córneas e com bons índices nos outros quesitos, embora não faça cirurgias de fígado nem de medula. ;As comissões dos nossos hospitais ainda estão engatinhando;, diz a médica. Devido à escassez de profissionais, a equipe dela, formada por no máximo três pessoas por turno, 24 horas por dia, fica alocada no Hospital de Base, mas é acionada quando há possível doador em qualquer centro de atendimento do DF. Um problema recorrente na cidade, segundo a especialista, é a distância física de familiares para autorizar a doação. ;Muitas vezes, até um parente chegar, nós já perdemos a chance;, explica.

A fila de espera no DF é de aproximadamente seis meses para córnea, 15 anos para coração e seis meses para rim. Josinaldo de Jesus, que sofre de insuficiência renal, perdeu tempo por falta de informação. ;Eu estava fazendo os exames para ver se um dos meus irmãos poderia doar, mas não sabia que, mesmo assim, podia entrar na fila. Com um irmão, não deu certo. Agora estou fazendo os testes com outro, mas também estou no cadastro;, conta o rapaz de 34 anos. Pai de quatro filhos, Josinaldo descobriu o problema há cinco anos, em estágio grave.

De todas as privações em função da doença, Josinaldo ressente-se mais de não poder viajar nem trabalhar. ;Fui aposentado, mas preciso aumentar a renda. Só que quando falamos para um empresário que precisamos sair mais cedo três vezes na semana, ele não contrata;, reclama. Josinaldo também passa por um problema comum entre os pacientes que dependem da rede pública. ;Temos que estar com vários exames atualizados para fazer o transplante. Mas demoram tanto para marcar um exame, que quando sai o resultado de um, os outros já venceram;, lamenta o baiano de Santa Maria da Vitória.

Palavra de especialista
Responsabilidade de todos

O transplante de órgãos e tecidos distingue-se das demais modalidades terapêuticas por ser a única cuja matéria-prima não pode ser comprada, pois, para salvar o paciente, faz-se necessário obter a doação de partes do corpo de um semelhante. A construção da cadeia de solidariedade, com o elo doador-receptor, no qual a partida de um possibilita o renascer de muitos, é tarefa complexa, que requer intensa articulação entre aqueles que necessitam de transplante, os profissionais que realizam esses procedimentos, os poderes públicos que regulamentam esses atos e a sociedade, que precisa estar sensibilizada para atender ao apelo da doação.

A população, uma vez informada, responde bem a esse apelo. Após cada campanha ou mensagem positiva sobre doação, o país inteiro experimenta imensas ondas de solidariedade, que materializam a tese de Edgar Morin, de que ;a espécie manifesta comportamentos solidários, de que nós temos um potencial de solidariedade, a questão é como fazer para despertá-lo;, o que nos incita a conceber a solidariedade não apenas como um valor humanista, mas sobretudo como condição prática da sobrevivência de uma sociedade.

O Brasil alcançou, já no primeiro trimestre de 2010, a marca de 10 doadores por milhão de habitantes, prevista para o fim do ano. Esse aumento, majoritariamente concentrado em alguns centros, deve-se a ações e iniciativas direcionadas para aumentar a eficiência na detecção e efetivação de doadores, somadas às atividades de capacitação, articulação e sensibilização desenvolvidas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Decisão política de gestores, planejamento racional, educação e informação são, portanto, elementos infalíveis para uma política de transplantes eficiente.

Em um sistema de saúde descentralizado como o do Brasil, é de vital importância o engajamento dos governos estaduais para combater a desigualdade regional ainda tão gritante. O fosso existente entre os vários ;Brasis do transplante; só será reduzido mediante o estabelecimento de metas a serem progressivamente alcançadas pelos gestores estaduais na captação de órgãos para transplante, definidas a partir do patamar em que se encontram. A história dos direitos do homem, todos sabemos, inclusive dos direitos à saúde, não se fez num único lance. Essa responsabilidade política e ética é difícil de ser assumida e, exatamente por isso, é uma necessidade assumi-la. Juntos, governo e sociedade, podemos fazer muito.

Henry Campos, vice-presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, onde também é vice-reitor

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