A educação de uma pessoa envolve inúmeros fatores. E inúmeros atores. Mas são escola e família as duas instituições que têm importância imprescindível na formação do cidadão. Um dos desafios modernos é tentar entender qual é o papel de cada uma na educação do indivíduo. E mais: como deve ser a relação entre educadores e pais, uma vez que, segundo especialistas, a escola vive uma ;crise de sentido; e a família vem abandonando a configuração tradicional (pai, mãe e filhos)?
Segundo levantamento recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), baseado na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o tradicional arranjo familiar caiu de 62,8% do total de famílias, em 1992, para 49,9%, no ano passado. A queda do modelo familiar tradicional aconteceu com a ascensão de outros arranjos: no mesmo período, por exemplo, o número de famílias compostas por mãe com filhos aumentou de 12,3% para 15,4%, enquanto as famílias de pais com filhos cresceu de 1,6% para 2%.
Para a pesquisadora Márcia Maria Brandão Santos, no entanto, os trabalhadores em educação ainda não conseguiram absorver o crescimento dos novos arranjos e ainda idealizam a família ideal ; que seria fundamental para a eficácia do aprendizado do aluno: ;Os professores ainda têm um discurso cristalizado, que dissemina concepções idealizadas da família, levando-nos a entender que a ;desestrutura familiar; seria o mais forte determinante do fracasso dos alunos;. A percepção está presente na dissertação de mestrado Em busca de escolas eficazes: a experiência de duas escolas em um município de São Paulo e as relações escola-família, apresentada em outubro na Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo (USP).
O estudo qualitativo foi resultado de entrevistas com diretores e professores de duas escolas urbanas municipais, responsáveis pelo ensino de crianças entre a 1; e a 4; série. Márcia Santos, que é supervisora de ensino da Secretaria de Educação de São Paulo, defende o estudo como um retrato da maneira como a escola enxerga a sociedade, resultando em ;dados indicativos dos modos como a escola tem traduzido e operacionalizado as propostas atuais que pressionam/estimulam os sistemas de ensino a estabelecerem vínculos mais fortes e efetivos com a família;.
;O aprendizado acontece, independentemente da condição.; É o que defende a pesquisadora, a partir do resultado do estudo. ;Se começarmos a vincular o estudante à estrutura familiar, teremos um indicador interno dizendo que o estudante não aprende por isso ou aquilo. Mas todos aprendem, basta o reconhecimento da família como ela é;, afirma Márcia. Segundo a pesquisadora, os professores costumam atribuir o baixo aprendizado do aluno à ;desestrutura familiar; e às baixas condições de renda. Ainda de acordo com Márcia, a escola atual precisa se reinventar e descobrir novos sentidos. Para isso, um dos caminhos seria a apresentação de propostas de ações interventivas com a família para se construir uma vivência de prática.
A pequena Vitória Gabriela Gomes dos Santos Alves, 9 anos, não conhece a vivência do termo ;arranjo familiar tradicional;. Isso porque a vinda de Gabriela não era esperada pelo pai, o vigilante Antônio Alves de Lira, 58 anos, que é casado há mais de 30 anos e tem outros três filhos, com idades que vão de 27 a 35 anos. ;Eu fiz um teste de DNA para ter certeza que era minha filha. Depois que eu tive, ela virou o xodó. A verdade é que agora tenho mais tempo para cuidar dela do que tive para cuidar dos meus outros filhos;, conta. Devido à disponibilidade do pai ; que trabalha apenas à noite ;, Gabriela mora com ele e a madrasta há seis anos.
;A Gabriela é uma excelente aluna, muito dedicada. Mas isso acontece porque o pai acompanha e participa muito;, relata a sua professora, Mara Felícia Rodrigues. Gabriela, por sua vez, não tem do que reclamar: ;Acho a ajuda do meu pai na escola perfeita;.
Teórica e idealmente, a família de Gabriela seria ;desestruturada; e, assim, um potencial motivo para a garota não ter um rendimento satisfatório na escola. A superintendente do Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Maria do Carmo Brant de Carvalho, é enfática no apoio à dissertação e na queda dos estereótipos educacionais: ;O professor precisa ampliar o repertório linguístico dele. O termo ;família desestruturada; é perverso. Há famílias com diferentes arranjos, o que não quer dizer desestrutura.;
Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Roberto Leão, é simplista afirmar que os professores teriam uma visão idealizada da família, já que eles estão inseridos na sociedade. ;Cerca de 80% do quadro educacional é composto de mulheres, que já não estão nos lares cuidando dos filhos. Quem cuida da educação entende o que acontece ao seu redor;, afirma.
Para Leão, uma queixa entre docentes é a responsabilização, a partir do surgimento de novos arranjos, por uma educação que deveria ocorrer em casa. ;Já que a família mudou, o estado deveria oferecer políticas públicas para que os estudantes tenham uma educação ideal e integral, estruturas que compensem ausências. Não existe a culpa da família desestruturada, existe a confusão de papéis.;