A inclusão dos 151 medicamentos nas listas de distribuição obrigatória e gratuita é avaliada por uma comissão criada há pouco tempo pelo Ministério da Saúde, o Comitê de Incorporação de Tecnologia (Citec). Desde 2006, o comitê precisa decidir qual medicação deve ser incluída nas relações do SUS. A atuação do Citec, porém, tem ;vários problemas nos processos de inclusão;, principalmente a demora para que um novo medicamento passe a fazer parte das obrigações do SUS, segundo a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Em relatório sigiloso encaminhado neste ano à PFDC, o Ministério da Saúde detalha os 151 medicamentos que podem ser incluídos nas listas do SUS, conforme critérios adotados pelo Citec. A maioria desses fármacos foi sugerida por recomendações e ações judiciais do Ministério Público Federal (MPF) de diferentes estados.
Um paciente com um diagnóstico e uma receita médica em mãos esbarra na ausência do medicamento na rede pública e, então, decide procurar um advogado ou diretamente o MPF. Inquéritos são abertos para investigar a necessidade do medicamento recém-lançado e receitado pelos médicos. Constatada a eficácia do tratamento e descartados os interesses exclusivos pelo lucro dos laboratórios farmacêuticos, o MPF recomenda ao Ministério da Saúde ; ou cobra na Justiça ; a inclusão do fármaco nas obrigações do SUS.
Levantamento
O Correio fez um levantamento de mais de 30 medicamentos que são cobrados pelo MPF e pela Justiça Federal, necessários para o tratamento de milhares de pacientes no país. As doenças são variadas, mas quem sofre mais à espera de um remédio são os portadores de doenças raras e graves, como algumas síndromes genéticas e manifestações específicas de alguns tipos de câncer. Os portadores da doença de Fabry, por exemplo, têm há apenas oito anos a possibilidade de se tratar com duas diferentes terapias. Até hoje, conforme a PFDC, os medicamentos não estão incluídos nas relações oficiais do SUS.
;Se os medicamentos estivessem na lista do SUS, seria tudo muito mais fácil;, afirma Wanderlei Centofante, presidente da Associação Brasileira de Pacientes Portadores da Doença de Fabry e Familiares. Segundo ele, pelo menos 170 brasileiros nasceram com um gene defeituoso e são desprovidos de uma enzima cuja função é eliminar gordura do organismo. Para terem acesso aos remédios existentes desde 2002, o único caminho é recorrer à Justiça. Pelo caminho judicial, conforme Wanderlei, muitos morrem antes de qualquer decisão.
Somente no ano passado, o Ministério da Saúde respondeu a 1.780 ações judiciais com pedidos de medicamentos. Foram gastos R$ 83,1 milhões para adquirir os remédios exigidos pela Justiça. Quase todas as ações, segundo o ministério, cobravam atendimento contínuo aos pacientes, dependentes de medicamentos de uso prolongado. Mais de 1,1 mil diferentes fármacos foram comprados por via judicial, o que envolve medicamentos de alto custo e de assistência básica. São, portanto, duas circunstâncias que levam à judicialização da assistência farmacêutica no Brasil. Uma é a falha das listas oficiais do SUS, que deixam de incluir produtos básicos para o tratamento de doenças raras. A outra é a própria incapacidade de suprir o fornecimento de medicamentos básicos, que já constam das relações oficiais do sistema público de saúde.
Efeito
Em março deste ano, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) reforçou a atribuição da União de custear medicamentos de alto custo a qualquer cidadão brasileiro, independentemente de o produto integrar ou não a lista de obrigações do SUS. Tanto o governo federal quanto a prefeitura de Fortaleza (CE), no caso avaliado pelo STF, tentavam se livrar da determinação judicial de custear o tratamento dado a uma jovem de 21 anos, portadora de uma doença neurodegenerativa rara, conhecida como Niemann-Pick tipo C. A base do tratamento é um medicamento chamado zavesca. Para o Poder Público, não ficou comprovado que o remédio é eficiente. Para o STF, em decisão do ministro Gilmar Mendes, a investigação do MPF comprovou que a medicação surtia efeito contra a doença.
O caso de Fortaleza, que norteou a decisão do STF, não é o único no país que levou a uma manifestação do MPF. O procurador da República Ailton Benedito de Souza, de Goiás, expediu uma recomendação para que o Ministério da Saúde, num prazo de 30 dias, desse início a um processo de inclusão do zavesca no tratamento conferido pelo SUS a pacientes com a síndrome de Niemann-Pick. Segundo apuração do procurador, o tratamento contra a doença custa cerca de R$ 22 mil por mês. ;Existe um medicamento para o tratamento da síndrome. Apesar de não curar a doença, impede seu avanço;, argumentou o procurador.
O principal argumento do Ministério da Saúde para a não inclusão de um medicamento é a falta de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou a possibilidade de substituição por produtos já oferecidos gratuitamente pelo SUS. O procurador Ailton Benedito diz que boa parte dos medicamentos de alto custo mais modernos já foi aprovada pela Anvisa. ;O MP e o governo não podem ser instrumento de lucro dos laboratórios, mas nada justifica um medicamento estar aprovado pela Anvisa e não estar incorporado no SUS.;
Processo longo e sigiloso
As decisões confidenciais sobre a inclusão de medicamentos excepcionais nas listas do Sistema Único de Saúde (SUS) impedem que as escolhas sejam feitas com transparência e participação social. Os processos tramitam lentamente no Comitê de Incorporação de Tecnologia (Citec), do Ministério da Saúde. Faltam regras e critérios mais claros para a inclusão dos novos fármacos no SUS. Essas são as conclusões do grupo de trabalho de saúde criado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), da Procuradoria-Geral da República (PGR), que acompanha as dificuldades da União em ampliar a assistência farmacêutica gratuita no país.
Ainda de acordo com o grupo de trabalho de saúde, o ministério negocia transferência de tecnologia de medicamentos sem registro, mas deixa de incluir remédios que já foram registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). ;Não há clareza sobre critérios de custo-efetividade ou sobre qual a necessidade de comprovação da eficácia.;
O Ministério da Saúde também deixa de acompanhar a aplicação dos recursos destinados à assistência farmacêutica, conforme os procuradores da PFDC. ;O dinheiro é da União e cabe ao ministério garantir sua correta aplicação, exigindo a contrapartida de recursos e o efetivo fornecimento do medicamento.;
Uma nota técnica do Ministério da Saúde, elaborada em julho do ano passado para responder a questionamentos da PFDC, estabeleceu prazos para a conclusão da revisão da lista de medicamentos excepcionais. Até março deste ano, conforme a nota técnica, os protocolos com as diretrizes terapêuticas estariam ;definitivamente; publicados.
Desde 2009, segundo o Ministério da Saúde, 40 protocolos foram revisados ou elaborados, equivalentes a 62 doenças. Esses documentos passam a conter novos medicamentos para o tratamento das enfermidades. Dezenas de novos remédios ainda estão em análise.
Depoimento
Tensão constante
Quando o Matheus tinha um mês de vida, um furinho de agulha de uma vacina na perna provocou um grande hematoma. Ele precisou ser internado numa UTI. Com quatro meses, na segunda dose da vacina, ocorreu o mesmo sintoma. Foi aí que se diagnosticou que o Matheus tem hemofilia tipo A severa, uma doença que impede a coagulação do sangue.
Fui em busca de tratamento profilático. Como a Constituição proíbe a comercialização de medicamentos derivados de sangue, só o governo pode fornecer a medicação. A falta do remédio pode levar a deficiências físicas ou à morte. Como estava havendo a quebra no fornecimento, procurei o Ministério Público. Em 2006, surgiu uma medicação que não é derivada de sangue, que tem o mesmo efeito e que ainda oferece proteção contra vírus. Mas não está na lista do SUS.
Fui ao MP novamente, que solicitou que o medicamento entrasse na lista. Já houve decisão favorável. Nunca houve um ano completo sem desabastecimento. Isso é mais do que uma angústia. O Matheus pode ter um sangramento e morrer dormindo, sem eu ter medicamento nem para uma emergência. Meu filho tem uma rotina normal. Ele só sente que é hemofílico quando há desabastecimento. Aí, a gente tem de limitar o futebol.
Roberta Gomes de Lucena, 40 anos, é técnica judiciária e mora no Gama.
Inclusão gradual
O Ministério da Saúde gasta 12,5% de seu orçamento para custear a oferta gratuita de medicamentos. Foram R$ 6,4 bilhões no ano passado, valor 3,3 vezes maior do que o gasto em 2003, segundo nota da assessoria de imprensa do ministério ao Correio. A pasta sustenta que o aumento dos investimentos no custeio dos medicamentos, a atualização de protocolos clínicos, o aprimoramento da legislação e uma parceria com o Judiciário melhoraram a oferta de remédios de alto custo, ainda que existam medicamentos fora das relações oficias do Sistema Único de Saúde (SUS).
;A incorporação de tecnologias e de medicamentos no SUS é feita a partir da análise da eficácia, efetividade e custo-benefício;, afirma o ministério.
Diante da grande quantidade de ações na Justiça, o Ministério da Saúde firmou uma parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para diminuir ;novos conflitos na área de saúde;, principalmente no que diz respeito ao fornecimento de medicamentos na rede pública. Fazem parte da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) 343 medicamentos. Essa relação é atualizada a cada dois anos e, a partir da definição da lista, o Ministério da Saúde repassa recursos para os estados comprarem os medicamentos básicos.
A lista dos medicamentos de alto custo relaciona mais 147 fármacos, indicados para o tratamento de 79 doenças. ;Houve a inclusão de 16 medicamentos para o tratamento de hipertensão arterial pulmonar, dor nas articulações e doença sanguínea;, diz o ministério.