postado em 21/11/2010 08:29
Antes de começar a prova, aplicada há duas semanas, a única preocupação dos 3,3 milhões de estudantes que fariam a avaliação era conquistar o melhor rendimento. Afinal, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2010 trouxe consigo pelo menos um número expressivo: 83 universidades decidiram utilizar a nota do exame no processo seletivo, como apoio ou substituição ao tradicional vestibular. Para que a preocupação mudasse de foco, muitos estudantes não precisaram nem abrir a primeira prova, iniciada às 13h, em 6 de novembro. Com o caderno fechado, já era possível identificar a divergência entre a ordem das questões, revelada na capa, e a orientação de marcação presente no cartão de resposta. Era o início do debate ; alimentado ainda por um complexo trâmite judicial ; em torno da 13; edição do exame.Depois da aplicação do Enem, o Ministério da Educação (MEC) reconheceu, além da falha de inversão no cabeçalho do gabarito, erros de impressão no caderno amarelo da prova. A primeira falha foi atribuída ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo exame, e a segunda, assumida pela gráfica RR Donnelley, que imprimiu os cadernos. A falta de preparo e rigor dos fiscais, durante a aplicação, também foi apontada por candidatos de todo o país como a causa de erros e estresse. A reação de estudantes começou individualmente, atingiu os movimentos estudantis e culminou em diversas manifestações não orquestradas ; apesar de simultâneas ; nas ruas das capitais do pais. Nas bandeiras e no discurso cotidiano, a revolta tornou-se evidente.
;Se eu me preparo durante um ano para essa prova, eles têm obrigação de se preparar também. Se eu não posso errar, porque tenho que garantir a melhor nota, eles também não podem cometer erros;, opina a estudante Nathália Telles da Costa, 18 anos, que estuda há um ano e meio para entrar no curso de medicina. ;Não podemos boicotar, porque hoje em dia dependemos do Enem para vários vestibulares. Se deixamos de fazer, podemos ser prejudicados;, conta. Nesta avaliação, a estudante inclui dois colegas ; Esther Vieira Soares (18) e Guilherme Medeiros de Souza (18), que também se preparam para a carreira médica no pré-vestibular Dinatos COC.
As falhas abriram espaço para um terreno fértil no qual tudo passou a ser questionado por envolvidos e especialistas: a lisura dos procedimentos que envolveram a aplicação do exame, a forma de contratação das empresas participantes do processo, a segurança que envolveu a prova, a capacidade dos profissionais, a isonomia de uma nova prova apenas para prejudicados e a forma de identificação dos mesmos, o modelo de cobrança do conteúdo e da utilização da nota, e até mesmo os objetivos do exame.
Debate
O pesquisador da área de avaliação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Ocimar Munhoz Alavarse, resume a complexidade do debate: ;O problema é que, primeiro, o Enem se envolveu fortemente nas páginas policiais e, depois, foi para as páginas políticas. Isso talvez não tenha contribuído para se pensar o exame do ponto de vista das políticas educacionais;.
Para Munhoz, as falhas deste ano poderiam ter sido minimizadas caso o MEC tivesse agido com mais agilidade e firmeza, inclusive convidando outras instituições para apurar o ocorrido. ;O problema em uma prova como essa não pode virar uma espiral de boataria. É preciso apurar o que aconteceu o quanto antes. Tem que ser feita uma auditoria acompanhada por pessoas de dentro e de fora, chamar instituições como o Ministério Público e a OAB, por exemplo. Não pode ser apenas o implicado a fazer a apuração. Ela é importante inclusive para tirar lições para o futuro, para a continuidade ou não do próprio Enem. Afinal, posso chegar à conclusão de que alguns erros não podem ser eliminados. Mas sem apuração, é pura especulação;, defende.
A doutora em Educação e autora do livro Impactos da avaliação na educação superior, Giselle Real, defende o Enem como uma ;sacada;, mas reforça que os erros de logística continuam sendo um obstáculo. ;Uma das justificativas para as falhas deste ano foi o excesso de sigilo. Mas independentemente de sigilo, é preciso ter uma equipe dentro do ministério que funcione bem. É preciso garantir, minimamente, o funcionamento.; A pesquisadora e professora da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) acredita, no entanto, que a logística que envolve o exame ;tende a se resolver;: ;Temos exemplos a seguir, como aquele dos Estados Unidos, que conta com um sistema semelhante que funciona muito bem. No Brasil, é algo a ser aprimorado;, avalia.
Para o pesquisador do Núcleo de Pesquisa da Educação Básica e Superior da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Erasto Mendonça, o debate que envolve a motivação e a atual aplicação do Enem precisa ser aprofundado, para além dos aspectos de logística. O professor defende que o exame, enquanto ;política nacional de avaliação do desempenho individual do estudante;, é insuficiente. ;Como avaliação, o exame é precário. Simplesmente porque não é avaliação, é apenas uma prova, igual ao vestibular. Não podemos avaliar um estudante depois de 12 anos com uma prova;, diz. Mendonça afirma que o exame pode começar a ser estudado, no mínimo, como uma avaliação seriada, como já é feito pela UnB, por meio do Programa de Avaliação Seriada (PAS), que avalia os estudantes logo após cada ano do Ensino Médio.
Já o pesquisador Munhoz, da USP, defende que o Enem é interessante como um exame que pauta conteúdos nacionais, e não regionais, para estudantes de todo o pais. No entanto, o docente critica a eficácia do exame quanto aos argumentos normalmente vinculados a ele: ;Tem-se dito muito que o Enem vai funcionar como um sinalizador para o currículo do Ensino Médio. Posso até discutir isso, mas é uma ilusão achar que uma prova vai orientar um currículo. Não confundamos meia dúzia de escolas privadas que fazem qualquer coisa para disputar um aluno, escolas que se pautam por avaliações externas, com o conjunto das escolas públicas do país. Alem disso, não existe recall. O aluno não volta com a prova para a sala de aula dizendo para o professor o que errou, o que deveria existir em sala de aula;, diz.
Já a professora Giselle Real defende que questões básicas relacionadas a prova ainda precisam ser melhoradas, como a extensão. ;A prova está muito longa, a redação ainda precisa ser aprimorada. São questões que devem ser monitoradas para que a prova atinja uma qualidade enquanto sistema de seleção. Ele está apenas minimamente garantido;, comenta. Os estudantes alertam, em coro, que este ainda é um dos principais problemas do exame. ;A prova não mede o nosso conhecimento, e sim a resistência. É uma prova enorme, com textos enormes que são utilizados para uma única questão, e sem a interdisciplinaridade que dizem ter. Eu saí estressadíssima da prova, e todo fim de semana é muito importante nessa reta final;, aponta Esther.