Brasil

Apenas 30% dos 24 mil menores abandonados retornaram ao lar em 2010

postado em 25/12/2010 07:49

Na casa pequena e brilhante, de tão limpa, no Arapoanga, setor habitacional humilde de Planaltina (DF), a noite de Natal será muito especial. Além das gostosuras do jantar, da troca de algumas lembranças, do pinheiro branco iluminado, a família de Luzia* estará completa. A senhora de 52 anos, mãe biológica de oito filhos ; sete vivos ;, ganhou há 15 dias o seu melhor presente: o retorno de Mateus*. Neto que ela sempre criou e chama de filho, o garoto passou um ano e seis meses acolhido em um abrigo, por determinação judicial, depois de abandonar a escola, passar boa parte do dia na rua e ser ameaçado de morte por conhecidos da vizinhança. Revigorada com a volta de Mateus, 13 anos, Luzia comemora. ;Estou muito feliz, agradeço a Deus todos os dias, porque foi um período de muito sofrimento, indo visitá-lo só nos fins de semana;, lembra a mulher. Mateus*, 13 anos, brinca sob a árvore de Natal: retorno para casa depois de um ano e meioO filho de Luzia faz parte dos 30% de meninos e meninas acolhidos em instituições públicas por estarem sob algum risco social ; maus-tratos, abuso, negligência, ameaça ; que conseguiram retornar ao lar em 2010. O dado faz parte de um balanço divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), primeiro levantamento do gênero no país. A pesquisa aponta que há, no Brasil, cerca de 24 mil crianças e adolescentes privados do convívio familiar em virtude de vulnerabilidades dos próprios pais ou do meio em que vivem. Além desse contingente, há 30 mil aptos a serem adotados. Para o juiz do CNJ Nicolau Lupinhaes Neto, a proporção de três retornos em cada 10 abrigados é razoável. ;Fica difícil fazer uma análise por não termos balanços de outros anos. Daqui para a frente, a intenção é continuar esse levantamento para verificarmos a evolução;, diz o magistrado. Vínculo Neto explica a diferença entre os 24 mil acolhidos e os 30 mil esperando por famílias adotivas. ;No caso dos aptos para adoção, o vínculo com parentes se desfez completamente. Muitas vezes nem há informações sobre os pais. Entre os retirados de casa por algum problema, precisamos trabalhar essas famílias, tentar resolver as dificuldades que levaram o juiz a decretar o acolhimento, para integrá-los de volta ao lar;, afirma o juiz. Outra boa solução, segundo ele, é tentar realocar as crianças na família extensa, ou seja, entre pais, tios ou avós. ;Esgotadas todas as possibilidades, a Justiça faz a destituição do poder familiar, proposto pelo Ministério Público, e encaminha para a adoção. O trabalho fundamental é tentar evitar isso;, explica Neto. Ele destaca, porém, que além das varas da infância e juventude, as demais redes de proteção social precisam funcionar, como os órgãos de assistência social. Psicóloga e presidente do Projeto Aconchego, entidade de apoio à adoção no Distrito Federal, Soraya Pereira destaca a carência de profissionais cruciais na reintegração dos acolhidos em suas famílias. ;Faltam psicólogos e assistentes socais. O papel do abrigo também é fundamental no apoio e transformação da realidade familiar;, ressalta Soraya. Ela lembra que os maus-tratos, incluindo abusos de todos os tipos, são a causa mais recorrente do acolhimento determinado por juízes. Mas destaca também a situação de pobreza dos pais. ;Ocorre muito, em função da desvantagem econômica, o abuso de poder, caracterizado, por exemplo, pelo pai que manda o filho pedir esmola;, explica Soraya. De acordo com ela, o dado encontrado pelo CNJ, de que 30% dos acolhidos retornaram às suas casas em 2010, é pequeno, porém acena para uma mudança nas políticas voltadas ao problema. ;Ter um balanço nacional, pela primeira vez, mostra que o país está se atentando para uma realidade grave, de meninos colocados em abrigos em função de direitos violados;, destaca a psicóloga. Dias infelizes Apesar dos 18 meses longe do convívio diário com Mateus, Luzia não tem do que reclamar do Judiciário. Ela sabe de cor a data em que, destruída por dentro, levou o menino, pelas próprias mãos, ao conselho tutelar da cidade onde mora. ;Foi em 21 de maio de 2009. A papelada já estava toda pronta para que ele fosse encaminhado para o abrigo, por causa da rebeldia dele. Mas como dois rapazes vieram até minha casa fazendo ameaças contra ele, eu procurei os conselheiros e pedi para agilizar;, conta a mulher. Em seguida, a Justiça determinou o acolhimento de Mateus. Ameaças Animado por estar de volta, o garoto atribui a um mal-entendido as ameaças. ;Roubaram a bicicleta de um vizinho e eu vi um menino gordo levando. Aí falei só isso, que foi um menino gordo. O outro menino achou que eu tinha acusado ele e começou a dizer que ia me matar;, conta. Mateus conta que nunca teve problemas com a polícia. Segundo ele, ficar na rua era mais divertido que estar na escola. Mas, agora, o aluno da 5; série promete continuar firme nos estudos. ;Estamos providenciando a transferência da escola onde ele estudava, no abrigo, para a que fica perto daqui;, conta Luzia. Enquanto esteve na instituição, Mateus estudou, teve atendimento psicológico e de assistência social, fez amigos. ;Tem um menino que ficou mais meu amigo, ele saiu antes de mim, mas a gente sempre conversa. Ele liga para cá;, conta o garoto, lembrando também que apanhava dos ;grandes; no abrigo. Embora tenha sido bem tratado enquanto ficou na instituição, Mateus diz que ;era muito ruim;. Pior para Luzia. ;Na hora que eu ia buscá-lo para passar um feriado com a gente, era uma alegria. Mas na hora de voltar, um sofrimento só;, lembra a avó. Mateus não escapa à falta de estrutura familiar quase sempre presente na vida de meninos abrigados. Aos 6 anos, ele descobriu que Luzia era sua avó, e não mãe. Quis conhecer a mãe biológica, ex-namorada de um filho de Luzia. A mulher pediu a guarda de Mateus, que durou exatos 17 dias de espancamentos e ameaças. ;Ela disse que ia me matar com 300 facadas se eu falasse com meu pai;, conta Mateus. Diante da situação, ele retornou para a avó, hoje com a guarda provisória do garoto. ;Eu sou a mãe dele, cuidei dele desde bebê, a família dele é a gente;, diz. Para 2011, Luizia espera se mudar, por ter medo das ameaças voltarem a ocorrer, e viver tranquila com o nono filho ; depois dos oito já crescidos. (RM) * Nomes fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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