Flávia Duarte
postado em 01/02/2011 08:20
* enviada especial São Paulo ; Toda roupa tem uma história. Mas nem toda história rende uma bela peça na passarela. A construção de Brasília e a trajetória de um de seus mais ilustres personagens podem, sim, serem recontadas pela moda. No quarto dia da temporada de inverno do São Paulo Fashion Week, a capital foi lindamente representada em dois desfiles na tarde de ontem. A estilista Danielle Jensen assinou pela grife Maria Bonita uma coleção inspirada nos candangos, os trabalhadores que ergueram uma cidade em pleno Planalto Central. Já o mineiro Ronaldo Fraga homenageou a capital ao relembrar o seu maior artista: Athos Bulcão.
A Maria Bonita retratou bem os dias de transformação do cerrado em capital. A escolha dos tons lembrava a terra vermelha do descampado. O cinza do cimento e do concreto também tingiu as roupas. A indumentária prática e confortável usada pelos candangos ganhou ares fashion. Os vestidos da marca foram incrementados por bolsas que faziam parte da peça. O mesmo foi feito com casacos e saias. A ideia era recriar roupas utilitárias, como as de um trabalhador que precisa carregar as suas ferramentas.
Azulejos de resina, com aspecto craquelado, foram aplicados às malhas em uma referência a Athos Bulcão, que assina diversas galerias espalhadas pela cidade. O céu de Brasília foi representado em vestidos de seda transparente. As bolsas usadas imitavam as marmitas dos candangos, e os chapéus de malhas, estilosos na passarelas, na verdade reproduzem os deformados e ressecados pelo sol, resultado de labuta desgastante.
Athos Bulcão, lembrado nos detalhes de grafismos nas peças do desfile da Maria Bonita, teve direito a uma apresentação inteira só para homenageá-lo. ;Difícil imaginar Brasília sem o olhar otimista, utópico e bem-humorado dele: no aeroporto, na rodoviária, em colégios, igrejas e teatros, nos prédios públicos e casas particulares de lá. O artista nunca restringiu seu trabalho à luz fria das galerias e sempre expôs o resultado de seu olhar generoso nos espaços coletivos do homem comum;, considera Ronaldo Fraga, o estilista mineiro que escolheu a vida do carioca como tema de sua coleção de inverno. Para Fraga, Athos morreu sem ter seu talento reconhecido pelos brasileiros como deveria. Afinal, foi Bulcão quem coloriu a cidade que acabava de nascer.
Os desenhos marcantes dos azulejos do artista apareceram nas estampas de vestidos com efeito de camadas. Suas linhas geométricas ilustraram tecidos grossos de inverno dos vestidos de modelagem mais ampla. O resultado foi que as modelos, literalmente, vestiram as obras de Athos, formando verdadeiros murais em forma de roupas. O inconfundível azulejo da pomba, utilizado na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, também foi reproduzido em algumas peças por meio de placas em tons de cobre. Botões foram decorados com a mesma ave, uma das criações mais conhecidas do artista na capital que escolheu para viver até o fim da vida.
Ronaldo Fraga, porém, não buscou referências apenas no trabalho de Athos na capital. Em sua pesquisa, voltou à infância do homenageado por meio de lembranças fragmentadas da infância de Bulcão no Rio de Janeiro. ;Nos últimos dez anos de vida, vitimado pelo mal de Parkinson, Bulcão desenhou incessantemente na tentativa de driblar a perda dos movimentos. Menos angular, sua poética então se concentrou em registros da infância lembranças de outros carnavais, amigos e amores perdidos no tempo, em desenhos inacabados. As cores chapadas se diluíram em tons esmaecidos, as formas precisas cederam lugar a linhas finas e tortuosas;, analisa Ronaldo. Traços que perderam a precisão, sem perder a poesia. E foi justamente isso que se viu na passarela do SPFW: toda a inventividade de Athos Bulcão como fonte de inspiração para a nova coleção de um dos maiores estilistas brasileiros.
* A repórter viajou a convite do evento
Serviço
O São Paulo Fashion Week vai até 2 de fevereiro, no prédio da Bienal de São Paulo. Hoje desfilam Do Estilista, Ana Salazar, FH por Fause Haten, Jefferson Kulig e Lino Villaventura.
PARA SABER MAIS
O homem de todas as cores
Guilherme Goulart
O artista do lúdico, do belo, das cores e do alvoroço geométrico deixou um legado de 262 trabalhos assinados no Distrito Federal. Carioca de nascimento, o artista plástico Athos Bulcão, morreu na cidade que mais amou aos 90 anos em 31 de julho de 2008. Mas espalhou o traço característico e singular em monumentos, fachadas de escolas, órgãos de governo, edifícios particulares e residências ; além de Brasília, há obras dele na Bahia, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, em São Paulo, na Itália e na França.
Athos nasceu no Catete, Rio de Janeiro, em 2 de julho de 1918. Passou a infância em Teresópolis, na região serrana. Foi criado pelo pai e duas irmãs adolescentes. As meninas cumpriram o papel de mãe, que morreu quando ele tinha 5 anos. A criança misturava fantasia e realidade, o que fez a família incentivá-la no mundo das artes. Mais tarde, Athos fez amizade com figuras destacadas, como Jorge Amado, Carlos Scliar, Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Alfredo Ceschiatti. Aos 21 anos, os amigos o apresentaram a Cândido Portinari. Foi o início do amadurecimento artístico.
Athos explorou a arte ao máximo, principalmente na capital do país. Foi desenhista, pintor, arquiteto, mosaicista. Aventurou-se por máscaras, por madeira, pela superfície que se apresentava a ele. Mas o artista do eterno ganhou admiração, respeito e reconhecimento também por conta dos trabalhos em azulejos (quem não lembra das pombas da Igrejinha da 307/308 Sul?). Athos é a tradução do belo. Não há criança ou adulto que permaneça alheio à criação do artista. Athos deu vida ao concreto do arquiteto Oscar Niemeyer. Foi gentil no trato com o universo.