postado em 03/04/2011 08:31
Das poucas lembranças de Nossa Senhora do Socorro, distrito de Aracaju (SE) onde nasceu, a mais entusiasmada se refere ao tempo de serviço no Exército. ;Fui do 28B, o 28; Batalhão de Infantaria, trabalhei muito;, conta Aurelino dos Santos, de 86 anos, os últimos 15 passados em uma instituição de longa permanência. Quando ele chegou lá, o local ainda era chamado de asilo, expressão abolida mais recentemente por reter um tom pejorativo. Apesar da mudança de nome, ainda existem muitos locais em péssimas condições pelo país, principalmente os clandestinos, que não passam por qualquer fiscalização. Mesmo assim, ninguém ousa duvidar da importância de fortalecer essas instituições nas próximas décadas, que hoje já sofrem com falta de vagas. Quem mais precisa do serviço reúne três características comuns a Aurelino: condição econômica desfavorável, sem referência familiar e dependência em virtude de complicações de saúde.Recuperado de uma fratura na perna direita que deixou sequelas, o então morador de Planaltina, que veio para Brasília tentar a vida na época da construção da cidade, não tinha mais para onde voltar quando deixou o hospital nem quem cuidasse dele. O contato com familiares estava perdido há anos, embora Aurelino ainda repita sem pestanejar o nome completo da mãe, do pai e de um irmão, com quem chegou a trocar cartas. ;Agora eu nem sei se ele está vivo, ele nem sabe se eu existo. Se tive filhos, não me lembro;, diz. Debilitado e sem ninguém, o idoso que só anda de terno e chapéu foi levado para a instituição onde está até hoje. As chances de reencontrar parentes, até pelo risco de todos já terem morrido e pela falta de referências, são cada vez mais remotas.[SAIBAMAIS]
Defensora pública da Central Judicial do Idoso no Distrito Federal, Paula Ribeiro aponta como um agravante na velhice futura a queda acentuada das taxas atuais de fertilidade do brasileiro. ;As pessoas têm cada vez menos filhos, que depois é quem pode cuidar da gente;, diz. Elaine, Bruna e Viviane distraem o dia de Maria Isaura Ribeiro. Solteira e sem filhos, a idosa de traços ciganos, vítima de um AVC e com sequelas da paralisia infantil, não se cansa de brincar com as três bonecas, devidamente nomeadas, no abrigo onde mora. Acha que se os bebês tivessem sido reais, hoje ela estaria em outro lugar. ;Eu poderia morar com elas, né? Acho tão bonito o filho dos outros;, diz sorrindo, com uma voz infantil.
Visitada por uma irmã apenas, Isaura sente falta das outras duas que, segundo ela, moram em Brasília, mas nunca aparecem. ;Deve ser porque elas estão sem tempo;, conclui, enquanto tenta se locomover com a ajuda de um andador. Mas a mineira de Engenheiro Navarro conhece de perto situações mais tristes que a sua. A própria colega com quem divide o quarto, Maria Valéria dos Santos, simboliza bem um tipo de residente muito comum nos asilos: o que veio das ruas. Na memória já muito debilitada, ela recorda do tempo em que ;pedia; na antiga Casas da Banha, no começo da Asa Norte, com os três filhos. Depois, ficaram dois. ;Um eu tive que dar, porque não tinha pai;, conta. Com mais de 15 anos no abrigo, Valéria, hoje com 83, ignora quando viu as crianças pela última vez, o tempo que se passou e a possibilidade de eles nem mesmo se lembrarem dela. ;Fico com saudade, mas filho não quer saber nada de mãe;, ressente-se.
Passado oculto
Também sem muita noção de tempo, o goiano José Martins, um simpático senhor de olhos fundos e rosto coberto por rugas, tem um passado pouco conhecido. O que se sabe é revelado pela mulher que o levou para o asilo. ;Ele apareceu na fazenda do meu pai e começou a trabalhar. Era muito prestativo, atencioso, cuidadoso. Foi se tornando parte da família. Do passado, só mencionava que a mãe bebia muito e que colocou fogo na casa onde moravam;, conta Senilda Leão Coelho, uma das filhas do casal que ;adotou; Martins. Com uma carteira de identidade feita depois de adulto, a data de nascimento foi inventada, dando hoje 94 anos. ;Colocamos o mesmo ano da minha mãe, mas acho que ele tem mais;, diz Senilda.
Martins nunca se casou ou teve filhos. Com o passar do tempo, o pai de Senilda morreu, a mãe chegava próximo dos 90 anos e ficou difícil cuidar de dois idosos. Foi quando ela procurou uma vaga para ele em um abrigo, 10 anos atrás. Aos poucos, precisou usar fraldas e viu o peso do tempo diminuir sua habilidade para caminhar. Hoje, movimenta-se muito lentamente e consegue ir ao refeitório sozinho. Mas perdeu a capacidade de falar. Comunica-se por gestos e sons muitas vezes incompreensíveis. Se ainda tivesse voz, contaria as histórias de lobisomem das quais sempre gostou. Também apreciava cortar lenha, ajudar na cozinha e ir para as festas do divino. ;Essa foi a vidinha dele, sempre na companhia dos meus pais, auxiliando a todos;, diz Senilda. Perguntado sobre como se sente, Martins posiciona o polegar para cima, com o sorriso aberto.