Brasil

Devastação das bacias do Cerrado impacta a vida de 88,6 milhões de pessoas

Série de reportagens A morte no berço das águas mostra como a devastação do Cerrado provoca impactos irreversíveis nas bacias hidrográficas irrigadas pelo bioma

postado em 24/04/2011 08:00
Concretagem nas margens da Lagoa Formosa (DF): degradação e desmando na região de nascentes
Com quase 20 mil nascentes, o Cerrado irriga seis das 12 regiões hidrográficas brasileiras e tem papel decisivo no abastecimento do Pantanal, situado na Bacia do Paraguai, e da Amazônia, na Bacia Amazônica. O bioma funciona como uma caixa d;água para 1,5 mil cidades de 11 estados, do Paraná ao Piauí, incluindo o Distrito Federal. Mas a fonte seca de forma dramática. Há provas suficientes da morte no berço das águas.

A maior savana da América do Sul, que ocupa um quarto do território brasileiro, foi o bioma desmatado com mais velocidade nos últimos 30 anos. Reduziu-se à metade para abrigar plantações de soja e, mais recentemente, de cana-de-açúcar. Levantamentos inéditos e com precisão científica nas nascentes comprovam a consequência da devastação: o fornecimento de água dentro e fora dos limites do Cerrado já sofre impactos irreversíveis, num processo de degradação localizado exatamente em pontos estratégicos para a existência e a qualidade dos recursos hídricos.

O retrato da morte do Cerrado é mais dramático quando se sabe que, desse reservatório, dependem regiões ocupadas por 88,6 milhões de brasileiros e lugares com grande quantidade de água, como a região amazônica. Para a Bacia São Francisco, onde está parte do Nordeste brasileiro, o Cerrado contribui com 94% da água que flui na superfície de rios e córregos. A água do Brasil Central chega aos estados que estão no litoral de Norte e Nordeste.

Um estudo do Ministério do Meio Ambiente (MMA), obtido pelo Correio com exclusividade, faz relação direta entre a devastação do bioma e as áreas de maior drenagem, aquelas com grande concentração de nascentes. Com base no levantamento feito pela Agência Nacional de Águas (ANA), o bioma foi dividido em 679 bacias de drenagem, situadas numa área de 3,5 mil km;. Daquelas que drenam o Cerrado e outros biomas, 62,1% têm índice de desmatamento que impacta no abastecimento de água. As nascentes são assoreadas e deixam de aflorar por causa do rebaixamento do lençol freático. Morrem antes de encorpar e abastecer os corpos hídricos das bacias brasileiras.

Minas e São Paulo são os estados com maiores concentrações de nascentes. E são os lugares com os piores índices de desmatamento nas áreas de grande drenagem, assim como Mato Grosso do Sul e Goiás. O levantamento elaborado pelo Departamento de Políticas para o Combate ao Desmatamento do MMA relacionou 60 municípios com ;risco muito alto; de impactos hidrológicos, ou seja, regiões de nascentes que perdem a função de abastecedoras por causa da devastação sem freio ou fiscalização. São os casos, por exemplo, das cidades de Pirajuba (MG) e Batatais (SP). Ricos em nascentes, os dois municípios têm um índice de desmatamento superior a 93%. Em Inocência (MS), que também aparece no documento do MMA, o desmatamento chegou a 85%.

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;Essas áreas desmatadas são estratégicas para a manutenção do ciclo de unidades hidrológicas maiores;, aponta o engenheiro florestal Ralph Trancoso, responsável por elaborar o documento do MMA. A partir de amplo levantamento, que inclui pesquisas e visitas a áreas impactadas, o Correio reuniu provas sobre mortes de nascentes e de importantes cursos d;água do Cerrado. O resultado é publicado numa série de reportagens, a partir de hoje.

Poucos estudos analisam a relação entre desmatamento e qualidade dos recursos hídricos. Há levantamentos isolados, produzidos para regiões específicas. A ANA, por exemplo, mantém 89 estações sedimentométricas nos rios do Cerrado. Essas estações medem a quantidade de sedimentos nos cursos d;água, provenientes de processos de erosão. Pelas medições das estações, porém, é difícil correlacionar desmatamento e sedimentação.

[SAIBAMAIS]A pedido do Correio, uma equipe da ANA e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Cerrados) analisou os dados de sedimentação nas cidades que mais desmataram o Cerrado nos últimos oito anos. Concluiu que em Formosa do Rio Preto, no Oeste da Bahia, a quantidade de sedimentos no Rio Preto mais do que dobrou a partir de 2002 ; chegou a triplicar em algumas medições.

O oeste baiano é o espaço por onde avança a fronteira agrícola em curso no país, principalmente a cultura da soja. Formosa do Rio Preto está sucessivamente no topo da lista de desmatamento do Cerrado nos últimos anos. Foram 2,2 mil km; devastados, somente na cidade, entre 2002 e 2009. As estações detectaram também índice elevado de erosões em rios da Bacia Tocantins-Araguaia. Uma região de chapada em Formosa do Rio Preto concentra nascentes dos Rios do Sono e Preto, que desaguam no Rio Grande, ainda na Bahia. É esse o principal afluente do lado esquerdo do São Francisco. A soja avança pela chapada.

Estrada que margeia a Estação de Águas Emendadas (DF): avanço da soja

Distrito Federal
Veja a relação completa das 60 cidades com grande incidência de nascentes e elevado desmatamento do CerradoA sensação dos trabalhadores mais antigos da Estação Ecológica de Águas Emendadas, no Distrito Federal, é de que a vereda existente no local está se deslocando. Trata-se de um encolhimento. Há dezenas de nascentes na estação. A expansão imobiliária em Planaltina, grudada à reserva, os novos loteamentos e o avanço da soja impactam no tamanho da vereda, de seis quilômetros de extensão. Num determinado ponto, apenas uma estrada separa a estação das plantações de soja e milho.

Um fenômeno raro ocorre em Águas Emendadas: duas grandes bacias nascem ali. Dois córregos afloram da vereda, em direções opostas. O que corre para o norte encontra o Rio Maranhão e abastece o Rio Tocantins, da Bacia Tocantins-Araguaia. O córrego que segue para o sul forma rios que vão desaguar no Rio Paraná, da Bacia do Paraná. A ocorrência desse fenômeno depende da conservação da área de proteção ambiental (APA) da Lagoa Formosa, na parte norte de Águas Emendadas.

A lagoa não conta mais com proteção natural: está cercada por plantações de soja, chácaras, clubes e empreendimentos imobiliários. O volume de água diminuiu nos últimos anos. O Correio flagrou uma plantação de eucalipto praticamente às margens da lagoa, bem ao lado de um clube recreativo. Um homem aplicava os defensivos agrícolas na plantação.

Em outra margem, um ;empresário do Lago Sul;, em Brasília, constrói um haras a 150m da lagoa. No local é possível ver postes inundados pelo curso d;água. A margem na área do haras foi aterrada e concretada para a instalação de muretas, que servem de suporte para a entrada de jet skis na lagoa. Os próprios funcionários contam que o Ibama já questionou a concretagem da margem. ;Meu patrão teve de ir ao Ibama em Brasília para resolver;, diz um dos trabalhadores do local.

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