Brasil

Organizações criminosas recrutam diariamente um exército de mulas

Milhares são contratados para transportar drogas do Brasil à Europa e à África. População carcerária de estrangeiros teve aumento de 138%

postado em 01/08/2011 08:52
Maria de los Angeles está presa no DF: espanhola alega inocência e culpa o namoradoCom apenas 40 quilos e pouco mais de 1,60m, Maria de los Angeles, 19 anos, está longe do perfil que se imagina de uma traficante de drogas. Tem rosto de menina, cabelos loiros e finos. Os olhos, cor de mel, estão sempre voltados para baixo, e o corpo franzino permanece constantemente curvado. A espanhola nunca tinha saído de Jimena de La Frontera, um ;pueblo; de 7 mil habitantes em Andaluzia. Tampouco tinha andado de avião. Mas, nos primeiros meses deste ano, Maria conheceu Madri, Lima e São Paulo. Hospedou-se em bons hotéis, comeu em restaurantes finos e gastou com presentes para a família e roupas para ela. ;No Peru, comprei uma calça branca. Não imaginei que ela me seria útil aqui;, diz, lembrando a cor do uniforme das presas.

Da capital federal, ela só tem lembranças do Aeroporto Juscelino Kubitschek e da carceragem da Polícia Federal. Maria foi presa em 10 de maio, ao lado do namorado, que ela chama de marido. A moça nega a participação no crime que lhe imputam: tráfico internacional de drogas. Diz que o marido lhe pediu para carregar as malas, onde estavam as jaquetas recheadas com mais de cinco quilos de cocaína. ;Ele sempre me prometeu uma vida boa, mas a viagem foi muito confusa. Ele estava nervoso e me deixava sempre sozinha no hotel. Mudava o roteiro e os horários do voo o tempo todo. Eu não sabia de nada.;

Maria de los Angeles ainda aguarda o julgamento. ;Nos primeiros dias, você não imagina que o tempo demora tanto para passar na prisão. É um isolamento. Sinto saudades de tudo. Se for para ficar presa, quero ir para a Espanha.; Pesa sobre a jovem a confissão feita no dia em que foi presa. ;Não queria que o meu marido ficasse preso de novo. Agora, quero contar a verdade.; O namorado de Maria está na Papuda.

Na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, a vida de Maria de los Angeles e a de Mami Eveline Gomes Nacassa, 33 anos, nascida em Guiné Bissau, cruzaram-se. Mais especificamente na cela oito, onde estão concentradas as estrangeiras presas por tráfico internacional de drogas. Mami foi detida no ano passado, com quase 6kg de cocaína escondidos em escovas de cabelo. Condenada, ela se arrepende. ;Errei. Estou pagando por ter aceitado uma oferta de ganhar dinheiro rápido. Estava precisando, para pagar um tratamento de saúde para meu pai;, justifica-se.

Mami não revela quanto ganharia. Diz que aceitou porque a tarefa lhe parecia fácil. ;Não era a primeira vez que viria ao Brasil. Já tinha feito três viagens a Fortaleza para comprar apliques de cabelo e roupas que revendia em meu país;, conta. O passaporte já estava carimbado quando a africana foi abordada pela PF. ;Sei que vou ser expulsa quando terminar de cumprir a pena, mas, se tiver a chance, quero ficar no Brasil. Ia trabalhar e trazer minha filha de 16 anos para morar comigo. Meu país é muito pobre e prefiro viver aqui.;

Soldados
O recrutamento de mulas garante lucro certo para os narcotraficantes pelo baixo custo da operação, apesar do aumento das prisões nos aeroportos brasileiros. Os criminosos recrutam geralmente pessoas em situação vulnerável e que querem ganhar dinheiro fácil. A negociação é feita por alguém próximo à pessoa que se tornará mula. Pode demorar dias ou meses. A viagem é marcada em cima da hora e sem que a mula tenha muitos detalhes, o que dificulta a investigação da polícia. A quadrilha é responsável por providenciar toda a documentação, passagem, dinheiro, hospedagem e alimentação. No Brasil, a mula costuma ficar em hotéis no Centro de São Paulo, aguardando a mercadoria. Essa espera pode levar mais de 10 dias, tempo para o traficante conseguir a droga.

[SAIBAMAIS]A estratégia das quadrilhas é enviar mais de uma mula no mesmo voo. Caso a polícia pare uma, as outras seguem com a mercadoria. A reportagem acompanhou de perto o trabalho da PF no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Em um mesmo dia, os agentes prenderam 22 pessoas. Elas estavam no mesmo voo e tentavam embarcar para Johanesburgo, na África do Sul. A cocaína pode ser ingerida em cápsulas ou escondida na bagagem e no corpo. A PF já encontrou a droga engomada em roupas e em malas revestidas da chamada ;coca preta;. ;A mula é a ponta. Temos que prender e desfalcar financeiramente os chefes das organizações criminosas;, destaca o delegado da PF em Guarulhos, Gilberto de Castro.


6 toneladas
Quantidade de cocaína apreendida pela PF desde 2007 apenas no Aeroporto de Guarulhos (SP). Mais de R$ 10 milhões foram confiscados nas operações durante o período. Em 2010, foram 362 presos no maior aeroporto brasileiro, sendo 53 brasileiros, 53 nigerianos e 46 angolanos, além de outras nacionalidades


Deportação
Pela legislação brasileira, os presos precisam cumprir pena no país. Em seguida, respondem a um processo de expulsão. A população carcerária de estrangeiros aumentou 138% nos últimos cinco anos, segundo o Ministério da Justiça. Em São Paulo, o governo destinou uma penitenciária somente para atender estrangeiros. São 1.763, sendo 235 bolivianos, 199 nigerianos, 124 peruanos, 111 sul-africanos, 11 angolanos e 99 espanhóis. Dados do Ministério da Justiça, obtidos pelo deputado federal Reguffe (PDT-DF), mostram que, no ano passado, 468 pessoas foram deportadas. Em 2009, foram 275 e em 2008, 323.

A legião que entra pela floresta

Izabelle Torres
Edson Luiz
Enviados especiais

Manaus, Rio Branco e Porto Velho ; Os dados sobre a entrada de estrangeiros no Brasil incluem investigações policiais sobre a atuação de coiotes e agenciadores que ajudam migrantes com os vistos negados a entrar de forma clandestina no país. Nos últimos três anos, a entrada ilegal ocorreu principalmente pelos estados do Norte brasileiro e envolveu haitianos, indianos e chineses, além de bolivianos, peruanos e colombianos. Gente que aproveita a imensidão da Floresta Amazônica e paga para criminosos evitarem que eles tenham de se submeter aos processos legais e à fiscalização das fronteiras.

No Acre, a Polícia Federal investiga a atuação de taxistas que não apenas ajudavam estrangeiros a entrar no país de forma clandestina, como atuavam no comércio de passaportes. A depender do destino pretendido pelo estrangeiro, o documento é vendido por até US$ 3 mil. O comércio de passaportes fez com que a Polícia Federal reforçasse o posto que atende as cidades de Brasileia e Epitaciolândia, dois municípios localizados na fronteira com a Bolívia, onde estão dezenas de haitianos que chegaram ao estado, muitas vezes de forma clandestina. Boa parte dessas pessoas deixou o país caribenho após o devastador terremoto de janeiro de 2010.

No Amazonas, os policiais investigam a atuação de criminosos que teriam aliciado dezenas de haitianos prometendo trazê-los para o Brasil em troca do pagamento de US$ 2 mil. Em junho, a Polícia Federal prendeu Repert Julien, 28 anos, depois que ele foi citado pelos haitianos como o responsável por ;vender o trajeto; até o Brasil e trabalhar para driblar a fiscalização na fronteira.

As investigações sobre a atuação de coiotes no estado envolvem até um padre, que trabalha na cidade de Tabatinga, a cerca de 500km de Manaus. Ele foi citado pelos haitianos como uma das pessoas que teriam colaborado no processo de entrada dos grupos. A polícia ainda não concluiu a apuração. ;Quando os estrangeiros chegam aqui, são entrevistados e analisamos seus históricos de vida. Entramos em alerta quando as histórias são estranhas e envolvem gente que se propôs a ajudá-los na travessia;, explica o delegado Charles Gonçalves, da Polícia Federal.

A entrada ilegal de migrantes chineses, cujo destino é São Paulo e a Região Centro-Oeste do país, também tem deixado em alerta a Polícia Federal de Rondônia. Há dois anos, uma megaoperação desbaratou uma quadrilha de coiotes que, assim como no Acre, era formada por alguns taxistas que faziam o transporte dos estrangeiros até a capital paulista. A quadrilha também tinha entre seus integrantes alguns donos de pequenos hotéis ao longo da BR-364, que liga Porto Velho ao restante do Brasil. O esquema era chefiado por um chinês residente em São Paulo que acabou preso pela Polícia Federal em 2009.

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