postado em 07/08/2011 08:00
Embora uma em cada sete mulheres, de todas as classes sociais, tenha feito aborto no Brasil, conforme atestam dados oficiais, apenas a parte mais frágil desse contingente é processada como criminosa. O artigo 124 do Código Penal, que estabelece pena de um a três anos de reclusão para quem interrompe de forma voluntária a própria gestação, parece existir somente para rés com pouca escolaridade, que trabalham como empregadas domésticas, muitas com filhos e quase todas vivendo com namorados ou maridos. Elas tomam a decisão com seus companheiros, submetem-se à clandestinidade na hora de comprar os abortivos, os usam conforme instruções escritas muitas vezes à mão pelo vendedor. Diante de uma complicação, vão ao hospital público, de onde saem indiciadas.
O perfil dessas mulheres e como chegam às mãos da Justiça, questões até então desconhecidas, foram reveladas por um estudo realizado pela Universidade de Brasília (UnB) e pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Intitulada Quando o aborto se aproxima do tráfico, a pesquisa analisou 10 processos judiciais e inquéritos policiais contra mulheres e vendedores de abortivos denunciados pelo Ministério Público do Distrito Federal entre 2006 e 2010. Recentemente, o trabalho ganhou aval científico, referendado pela revista Ciência & Saúde Coletiva, que prevê sua publicação em breve.
Entre as sete mulheres, todas moradoras do DF, indiciadas nos 10 processos analisados, 70% nasceram em cidades do interior do Norte ou do Nordeste e tinhamcompanheiro fixo. A escolaridade de nenhuma passa do ensino fundamental e as atividades desempenhadas vão de domésticas a funcionárias do comércio. ;Não há uma menina universitária ou de classe média. Elas não fazem aborto?;, indaga a antropóloga Debora Diniz, uma das autoras da pesquisa. Para a estudiosa, além da penalização da mulher menos favorecida do ponto de vista econômico e social, o estudo traz outro dado alarmante: a morte de duas delas. Segundo Debora, o dado precisa ser compreendido de maneira séria: ;São duas entre sete, é uma taxa alarmante. Os processos revelam que elas morreram porque demoraram muito a procurar ajuda devido ao medo de serem denunciadas;.
Foi também o medo que levou Fabiana*, 33 anos, a sangrar sozinha, sem ajuda médica. Depois de tomar duas vezes o medicamento, sem conseguir finalizar o aborto, ela, há oito anos, pegou um empréstimo e foi para uma clínica fora de Brasília. ;Eu não podia procurar um hospital. Querendo ou não, é um crime. Tive que levantar dinheiro para conseguir outra alternativa;, conta a profissional da área de eventos, que já era mãe de um menino quando decidiu pelo aborto. ;Estava em um namoro ainda recente, fiquei pensando como eu ia criar mais um filho, no quanto minha família ia me recriminar. Então, resolvi comprar o remédio. Procurei algumas amigas e logo consegui os comprimidos, que não surtiram efeito.;
Longe da meta
Na clínica clandestina, Fabiana recebeu o tratamento humanizado a que qualquer mulher que chega em uma emergência, depois de ter feito um aborto, tem direito. No Brasil, a média de curetagens por ano na rede pública é de 200 mil. O Ministério da Saúde não sabe dizer quantas são em pacientes que tiveram aborto espontâneo ou não. Mas há um dado alarmante que as autoridades reconhecem. Anualmente, morrem 75 mulheres a cada 100 mil nascidos vivos. O índice está muito acima dos 20 óbitos preconizados como razoável pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Pior é que a taxa se mantém praticamente estável desde 2002, variando entre 72 e 75 mortes, registradas em 2007, dado mais atualizado do governo federal.
Para Helvécio Magalhães, secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, o aborto ilegal é um componente da mortalidade materna, mas não o principal. ;Não há como termos certeza das razões das mortes devido ao problema da subnotificação. Entretanto, a hipertensão, a diabetes e a hemorragia correspondem ao grosso dos óbitos;, ressalta Magalhães. Questionado sobre as chances reais de conseguir cumprir a meta do milênio, segundo a qual o Brasil deve chegar a 2015 com 20 mortes por 100 mil nascidos vivos, ele destaca que a pasta está ;trabalhando duro com ações e investimentos maciços; na área. Magalhães afirmou, entretanto, que a descriminalização do aborto não está na agenda do governo federal. ;Discutir o marco legal não nos interessa;, afirma.
Internação
Financiada pelo Fundo Nacional de Saúde, a Pesquisa Nacional sobre Aborto (PNA), levantamento mais completo sobre o tema no país, mostrou que 15% das mulheres entre 18 e 39 anos já realizaram aborto uma vez na vida. Do total, 48% delas usaram medicamentos abortivos e 55% necessitaram de internação hospitalar por complicações. Não foram demonstradas diferenças significativas entre as religiões declaradas pela entrevistadas ; 15% são católicas, 13% declararam-se evangélicas, 16% responderam ter outras crenças. O restante não tinha religião ou não respondeu.
Não é crime
Só duas situações descaracterizam o aborto como um crime: quando não há outro meio para salvar a vida da mãe ou quando a gravidez resulta de estupro. Dados do Ministério da Saúde mostram um declínio no número de interrupções permitidas. Em 2008, foram 3.285, passando para 1.686 em 2010.
* Nome fictício a pedido da entrevistada