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Conheça mais sobre a tragédia, o luto e o nascimento de uma nova Rayline

Há um ano, uma jovem comoveu o Brasil ao enviar mensagens de socorro para o tio durante a queda de um avião no Pará. Saiba mais sobre a tragédia, o luto e o nascimento de uma nova brasileira chamada Rayline

postado em 17/03/2015 06:08

A família aguarda respostas sobre as causas do acidente. A sobrinha, também Rayline, trouxe esperanças e alegria

Daniel Camargos

Enviado especial

Santarém e Fordlândia (PA) ; Rayline marcou três gols pelo time Jardim Santarém na vitória por 5 x 0 ante o Atlético Mararu na Copa Norte de futebol amador, realizada em um campo de terra, com muita areia, no bairro do Santíssimo, em Santarém. Os gols levaram a equipe para a final do torneio, mas ela não pôde disputar o jogo decisivo e as companheiras foram derrotadas. Após a partida, Rayline foi para a casa da tia Marilena, que pintou as unhas da sobrinha com esmalte e ajudou a preparar o ;rancho;, nome da caixa com mantimentos que ela levava para passar 20 dias na aldeia indígena munduruku Sai Cinza, em Jacareacanga.

Rayline Sabrina Brito Campos, 26 anos, era técnica em enfermagem e prestava serviço para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão vinculado ao Ministério da Saúde. Permanecia 20 dias por mês na aldeia, atendendo aos índios. Os outros 10 dias do mês dividia entre Santarém, onde vivia parte da família; e Fordlândia, terra natal dela, uma pequena vila de Aveiros, com menos de mil moradores às margens do Rio Tapajós.

Rayline está morta. Ela é uma das cinco vítimas de um acidente aéreo em 18 de março de 2014. Apesar do ano que se passou, o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), órgão vinculado à Força Aérea Brasileira (FAB), ainda não concluiu as investigações. Não se sabe, portanto, as causas da tragédia e não há prazo para a entrega do relatório. Sem os documentos, é impossível indenizar as famílias.

Além de Rayline, duas técnicas de enfermagem (Luciney Aguiar de Sousa e Raimunda Lúcia da Silva Costa), um motorista (Ari Lima) e o piloto do avião bimotor (Luiz Feltrin) perderam a vida. Minutos antes de o avião cair, Rayline enviou duas mensagens de celular para o tio, Rubélio Pereira dos Santos. No primeiro texto, pedia ajuda e avisava que um dos motores do avião havia parado: ;Tio to em temporal e um motr parou avisa a mae q amo muit tods ...;. No segundo, pedia socorro.

O acidente aconteceu 10 dias depois do sumiço do avião que fazia o voo 370 da Malaysia Airlines, que sobrevoava o Mar da China, no golfo da Tailândia, com 239 pessoas, e que segue desaparecido. A coincidência ampliou a agonia dos familiares. O desaparecimento do bimotor Beechraf 58 Baron em um local de floresta então incerto, entre Itaituba e Jacareacanga, tornou as buscas um desafio e envolveu equipes do Exército, voluntários, familiares, colegas de trabalho e foi coordenada pela FAB.

Não fossem as desesperadas mensagens, a vida ; e morte ; de Rayline seguiriam escondidas como os destroços do avião na densa mata da floresta amazônica. Para milhares de trabalhadores da Região Norte, voar representa mais do que luxo, ascensão social ou capricho. É fundamental para quem leva o mínimo de dignidade a aldeias indígenas e populações ribeirinhas. A necessidade implica em grandes riscos: somente no ano passado foram 10 acidentes aéreos no Pará e 21 em outros estados da região, de acordo com o Cenipa.

O tio Rubélio dos Santos recebeu duas mensagens de Rayline antes de o avião cair: pedido de ajuda comoveu o país

Garimpo
Dezesseis dias depois da queda, a FAB interrompeu as buscas. Os familiares das vítimas foram a Brasília. Recebidos em audiência no Ministério da Defesa pressionaram para que o poder público não desistisse de encontrar os destroços. Foram atendidos, mas também organizaram uma vaquinha e arrecadaram R$ 19 mil para recompensar quem encontrasse o avião. O dinheiro gerou uma corrida. Uma espécie de garimpo.

Em 24 de abril, 36 dias após a queda do bimotor, um garimpeiro encontrou os destroços. O enterro do corpo de Rayline aconteceu em 28 de abril, 40 dias após o acidente. Nesse ínterim, a final da Copa Norte foi realizada. ;Essa situação toda abalou a gente. A Rayline era a melhor do time, se ela tivesse jogado a final poderíamos ter vencido;, entende Eleonai da Silva Filgueira, amiga de Rayline e responsável pelo convite para que a técnica em enfermagem reforçasse o ataque do Jardim Santarém.

Um reforço e tanto
Em Santarém ou em Fordlândia, a lembrança imediata de Rayline era como ela era boa de bola. Mas Rayline tinha planos mais ambiciosos do que brilhar nas partidas dos campos de terra batida e areia do Oeste do Pará. Além de batalhar pelo documento que a permitiria dirigir carros e motos, ela pagava a ampliação e reforma da pequena casa da família em Fordlândia. O salário que recebia para trabalhar na aldeia munduruku era considerado muito bom pelos parentes. Ela ganhava R$ 2.006, mais uma ajuda de custo de R$ 20 por diária fora de casa, o que ampliava o rendimento em R$ 400. Fazia dois anos que estava no trabalho. Antes, foi técnica em enfermagem no posto de saúde de Fordlândia.

;Ela era apegada demais à família, uma criança dentro de casa: abraçava e beijava a gente o tempo todo. Uma alegria só;, lembra a mãe, com a voz embargada e os olhos cheios d;água. O nome da técnica de enfermagem nasceu de uma junção dos nomes da família. ;Coloquei em um caderno, misturei, acrescentei um y e inventei: Rayline;, explica a mãe, Rosalina Duarte Brito. O pai, Raimundo de Brito e a irmã, Rosaline Brito Campos, cinco anos mais velha, contribuíram para a combinação de prefixos e sufixos.

Muitos preferiam chamá-la apenas de Ray. A irmã, Rosaline, principal conselheira e melhor amiga, usava simplesmente ;mana;. Formada em filosofia e professora, a irmã era uma espécie de segunda mãe para a caçula. ;Poucos dias antes do acidente, ajudei ela a montar um currículo. O plano era que ela encontrasse outro emprego assim que voltasse da aldeia;, recorda Rosaline.

Vida
Pouco depois da morte de Ray, Rosaline descobriu que estava grávida. Ela já tinha uma filha, Angelina Campos, 6 anos. ;A Angelina ficava passando a mão na minha barriga e dizendo que tinha sonhado que a tia Ray falou que ela ia ganhar uma irmãzinha;, lembra Rosaline. ;Eu disse: menina, deixe de bobagem! Não tem nada disso.;

Rayline Sabrine Campos Souza nasceu em 20 de fevereiro. Com 13 dias de vida, Rayline, a bebê, foi de barco para a casa, em Fordlândia. Menos de um ano antes, o corpo da tia que empresta o nome para a recém-nascida fez o mesmo trajeto, no caixão, para ser enterrado. Amanhã, na igreja de Fordlândia, será realizada a missa de um ano de morte.

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