Márcia Maria Cruz/Estado de Minas
postado em 19/03/2015 19:59
A reação bem humorada da estudante de administração pública Débora Adorno, de 22 anos, ao assédio verbal demonstra que a cantada às mulheres nas ruas não significa elogio. Cada vez mais, as mulheres entendem que é agressão. Na última sexta-feira (13/3), na Rua Oiapoque, no entorno dos shoppings populares do Centro de BH, a jovem foi vítima dos dizeres de homens que passavam e trabalhavam na região. Indignada com o ato de invasão de sua privacidade, descobriu uma forma divertida de desviar olhares masculinos: mostrou os dentes, comprimindo o lábio sobre a gengiva. A careta foi a arma que ela encontrou para afastar as abordagens indesejáveis.
O relato de Débora foi postado em seu perfil nas redes sociais e amplamente comentado por internautas brasileiros ; até o fechamento desta edição passavam de 24 mil curtidas e 3,4 mil compartilhamentos. A atitude e o desabafo na internet integram ações de muitas jovens que querem dar um basta no famoso "fiu-fiu". "Tem homem que vê a cantada de rua como um elogio. Pensa que a mulher gosta e que está na rua para isso mesmo", diz a estudante. Independentemente da roupa, do tipo físico ou estilo, as mulheres estão sujeitas a sofrer com a aproximação indesejada de estranhos. Muitas desviam o caminho quando veem uma concentração de homens, pois temem ser cantadas.
Assediada desde os 13 anos por homens nas ruas e criada com os irmãos em uma família tradicional, Débora percebeu o tratamento diferenciado entre homens e mulheres. Sentia-se incomodada com a liberdade que os irmãos tinham, mas que a ela era concedida com restrições. Somente aos 18 anos, ela se emancipou. Encontrou-se com o feminismo, passou a estudar e atuar para a igualdade entre os gêneros. O mesmo espaço que ela usou para divulgar o desabafo também foi onde encontrou informações sobre a luta das mulheres. A jovem se tornou leitora assídua de diversos sites que defendem o feminismo e condenam o machismo.
Com cabelos negros e longos, alta e esguia, olhos grandes expressivos, é impossível não notar a presença de Débora. No entanto, a jovem faz questão de dizer que o assédio não está associado à sua beleza. Para ela, é prática cultural em uma sociedade patriarcal, na qual o homem tem papel determinante, e que o corpo da mulher é hipersexualizado. Ela lembra que a cultura brasileira alimenta a imagem da mulher como objeto. Então, para ser vítima do assédio nas ruas, não precisa ser bonita, não é necessário usar decote, não é exclusividade de alguns locais .
Basta ser mulher e estar no espaço público para, em algum momento da vida, ou vários, receber cantadas masculinas. "Não é porque a rua é pública, que o meu corpo também é público", diz. Feminista por convicção, ela pondera que a luta das mulheres por igualdade costuma ser deslegitimada como se fosse histeria ou drama. No entanto, ela frisa que o machismo está permeado em todas as relações sociais. Conta que o irmão, que é bombeiro de porte atlético, recebe cantadas de mulheres e se sente muito invadido. Ele próprio reconheceu, no entanto, que é muito menos assediado do que qualquer mulher. Enquanto para os homens, o fiu-fiu é algo eventual, para as mulheres faz parte da rotina.
O episódio leva muitas meninas a pensarem sobre uma palavra pouco conhecida, mas que é fundamental na emancipação feminina: sororidade. O termo quer dizer que as mulheres são solidárias e se apoiam em diversas situações. Ao contrário de uma ideia de que elas estão sempre competindo uma com as outras, o feminismo revela que pode haver mais comunhão entre elas. Débora tem certeza que foi isso que ocorreu para que seu relato ganhasse o Brasil. O apoio também parte de suas colegas de faculdade, que aderiram ao método do dentinho.
Sem preconceito
A estudante Luísa Souza Costa, de 20, também já sofreu assédio nas ruas. Uma das situações mais constrangedoras ela passou ao lado de sua irmã gêmea, Larissa. As duas foram paradas na rua de casa por um sujeito, que começou a falar palavras obscenas, que a jovem sequer tem coragem de repetir. Recordar o caso a deixa nervosa. "É muito desconfortável. Evito vestidos e saias. Quando vou para a faculdade e pretendo sair mais tarde, levo a roupa na bolsa", conta.
Cada vez mais, as mulheres tomam coragem de encarar o assédio. A estudante Isadora Ribeiro, também de 20, sempre fica séria e encara o assediador. Mas ela lembra que muitas ainda preferem desviar o olhar ou baixar a cabeça. Para ela, a forma encontrada por Débora é bem descontraída, mas não retira a seriedade do enfrentamento. "Muitas mulheres interpretaram o dentinho e a careta como uma brincadeira, uma forma de banalizar o assédio. Foi a maneira que ela encontrou. Toda mulher tem que reagir como lhe for mais confortável." A jovem também se considera feminista. "Não é preciso super estudar o assunto ou ser ativista. O feminismo tem que ser demonstrado no dia a dia."
Depois do sucesso no post, Débora escreveu para responder alguns comentários que questionavam se ela não estava ridicularizando pessoas que tinham essa deficiência física. A jovem reafirma que é contra qualquer tipo de discriminação, inclusive o preconceito motivado por padrões de beleza.
Trechos do post
"Foi aí que um cara que passava na direção contrária da minha veio me olhando... me encarando, e daí, antes de ele falar alguma coisa, fiz a careta do dentinho. O cara estranhou e passou reto."
"Nessa hora choveu um arco-íris dentro de mim, porque de uma hora para outra não era mais eu quem estava desconfortável, de uma hora pra outra não era mais eu quem estava desviando o olhar, não era mais eu quem estava apertando o passo!! E eu me senti tão bem, tão segura, tão dona da situação, e ,cara, eu tava mesmo! Saí dessa rua específica e continuei o caminho até meu ponto de ônibus, feliz demais e com o dentinho lá à mostra e nenhum cara mexeu comigo, absolutamente nenhum, em um caminho de uns 10 minutos pelo Centro da cidade."
"E para os homens, eu já cansei de falar sobre isso, apenas parem. Não é um elogio, é uma agressão."