Jornal Correio Braziliense

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Tributo ao Boticário

Abram as portas do século 21. Há muita gente lá fora. Estão na caverna escura da ignorância grunhindo palavras de ordem e mirabolando um plano espetacular para afugentar o temido bicho-papão. O monstro não tem duas cabeças nem cospe fogo, mas ele tem o estranho hábito de amar o semelhante, não importa se ele usa lacinhos de ossos à la Pedrita ou grita como Flintstone ensandecido por sua Vilma. Perigoso esse tipo, não? Como assim amar o mesmo sexo? Como assim amar os dois? Realmente difícil de entender para quem perdeu aquele bonde da história e permanece na escuridão do preconceito e da falta de respeito pela linda diversidade do ser humano.

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Esse sujeito que se esqueceu de entrar na nave dos Jetsons em direção ao século 21 faz parte desta turma que quer tirar um comercial de O Boticário do ar apenas porque a peça publicitária mostra que qualquer forma de amar vale a pena. É o que se indigna de forma veemente contra um beijo gay de duas senhoras na novela do horário nobre, mas que em vez de mudar o canal faz apologia pela censura. É o que se senta confortavelmente no sofá de pedra do século 19, mas sente incrível desconforto na cama macia da tolerância.

É tão mais fácil criticar do que aceitar, afinal. É muito difícil perdoar aquele vizinho gay que todos os dias esfrega a felicidade na sua cara, não é? Mas é facílimo comover-se profundamente com a desgraça da amiga que apanha todos os dias e mantém o casamento. A felicidade incomoda; o sofrimento compadece. A livre escolha fomenta o ódio; a violência desperta a piedade. Em nome da família, dos bons costumes e da religião, um bando de gente desocupada quer ditar as regras da intimidade alheia ou evitar que o diferente venha a público mostrar que é possível ser feliz de um outro jeito, senão aquele que nos ensinaram há um século. Isso nada tem a ver com família, bons costumes ou religião. Tem a ver com preconceito, simples assim.

Engraçado imaginar que hoje somos capazes de nos relacionarmos com pessoas que estão tão distantes fisicamente, que temos acesso a todo tipo de conhecimento e informação produzida no mundo, que podemos escolher com quem desejamos nos casar, que podemos escolher nossa religião, que temos tecnologia até para fritar batata sem uma gota de óleo. Temos e podemos tudo, então. Só não se pode exercer livremente a escolha de quem amar. Ora, meus senhores e senhoras, voltem para a sua confortável caverna. Vivam a sua vidinha comezinha do comercial de margarina, mas parem de olhar pelo buraco da fechadura. A luz da liberdade pode cegá-los.