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O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Violência contra Jovens Negros, da Câmara dos Deputados, apresentado ontem, prevê a revisão do crime de injúria racial e a obrigatoriedade de se criar o Disque Racismo, canal de denúncias em todos os estados. Reportagens do Correio publicadas desde o último domingo mostraram a dificuldade de se obter dados relacionados a ocorrências e ações judiciais de discriminação racial. E que a maioria dos episódios acabam classificados como injúria, um delito mais leve que racismo. O presidente do colegiado, Reginaldo Lopes (PT-MG), afirmou que apresentará ainda projeto de lei para trazer expressões e contextos para diferenciar ambos os crimes. O parlamentar convocou sessão para votar hoje o texto da CPI.
Tanto o Executivo quanto o Judiciário desconhecem o número de ocorrências e ações judiciais de racismo e injúria racial. Levantamento do Correio mostrou que houve mais de 12.891 ocorrências de discriminação racial nos últimos três anos e meio, enquanto a Secretaria de Políticas para Promoção da Igualdade Racial (Seppir) recebeu apenas 1.676 denúncias no período. Da pesquisa feita pela reportagem, 68% (8.741) eram de injúria.
Segundo a relatora da CPI, deputada Rosangela Gomes (PRB-RJ), o relatório será adaptado para que cada unidade da Federação crie o próprio Disque Racismo. Hoje, só o Distrito Federal conta com um canal direto de denúncias. Faz dois anos que a Seppir promete a criação de um número nacional, que ainda não saiu do papel. Já a revisão do delito de injúria tem o objetivo de ;estabelecer uma diferenciação mais objetiva em relação ao crime de racismo;, como diz o texto. Para o presidente da CPI, a distinção dos delitos é fundamental e uma forma de combater o preconceito institucional. ;Propomos as novas recomendações com base nas reportagens do Correio. Os crimes de racismo não podem ser transformados em injúria pela lógica de um racismo institucionalizado no país;, afirmou.
Rosangela avalia que há uma impunidade institucional em relação aos casos de preconceito. ;Existe um racismo silencioso, escondido no nosso país, mas que muitos não aceitam e não acreditam;, afirma a parlamentar, que diz ser vítima de preconceito diariamente. Segundo ela, a discriminação resulta, em última instância, em episódios de violência grave, e a verba destinada para enfrentar a questão é insuficiente.
Outras medidas
Entre as principais propostas do CPI está a criação do Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial e do Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens. Ambas as iniciativas serão discutidas em uma comissão especial, caso o texto seja aprovado no colegiado. O primeiro prevê a arrecadação de recursos para políticas voltadas para o combate ao racismo. O segundo trata de ações diversas, desde campanhas de conscientização contra o preconceito a melhora na elaboração de dados estatísticos de violência e integração na atuação dos órgãos estatais.
Para o professor de direito da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) Cléber Lázaro Julião Costa, é preciso que o poder público reconheça de fato a existência do racismo para enfretá-lo de forma eficaz. ;No Brasil, a democracia racial foi colocada como um mito ou ideal em virtude de sermos um povo mestiço. Esse discurso é contraditório porque as normas expressam essa suposta mistura, mas a gente sabe quem é vítima de discriminação racial. É só observar estatisticamente, inclusive nos cargos de comando. Você quase não vê nas manifestações políticas atores negros;, afirma ele, que também é pesquisador do na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A história de uma luta diária
Aos 77 anos, a arte-educadora Lydia Garcia relata uma história de vida de luta diária pelo fim do preconceito. Nascida em 1938, ela trocou a Lapa, no centro do Rio de Janeiro, por Brasília, aos 22 anos. Aqui, tornou-se referência do movimento negro e criou cinco filhos. Todos com nomes de origem africana: Kenya, Mali, Luena, Yalê, Kwame. ;Foi uma afirmação da identidade, uma volta às raízes;, conta a primeira presidente do Conselho do Negro no Distrito Federal.
O histórico de combate marcado por episódios de preconceito é sentido no dia a dia. ;São situações desagradáveis. Na minha própria casa, algumas vezes eu fui discriminada por alguém que bateu na porta e achou que tinha que chamar a patroa;, conta. O mesmo aconteceu em sua atuação como professora de música. ;Já fui discriminada por pais de alunos que me viram num ambiente mais sofisticado, se sentiram mal e depois vieram dizer que eu tinha que ficar atrás de um fogão;, diz ela, que também foi fundadora do ateliê cultural especializado em moda étnica.
O encontro que a carioca guarda na memória ocorreu com o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, em 1991, na Universidade de Brasília (UnB). Anos depois, um reencontro, também na cidade. ;Pelo rádio sabia que ele ia dar uma entrevista num hotel. Fui para lá na hora. Quando cheguei, o carro dele parou, ajudei a abrir a porta e ele me deu o braço.;