Marinheiros acreditam que barcos têm alma. E, como um ciclo de vida, nascem e morrem. Na maior parte das vezes, embarcações são batizadas com nomes de mulheres. Mais tarde, depois de grandes e pequenas jornadas, se aposentam, pedem baixa. Por fim, recebem uma ;certidão de óbito;, com direito a homenagens no funeral. Mas nem sempre é assim.
Parte dos barcos velhos ; como carros, trens e aviões ; é abandonada por antigos donos nas margens de rios e no mar. Desde quinta-feira, o Correio publica a série de reportagens ;Cemitérios de lata;, que mostra como mais de 4 milhões de toneladas de aço, alumínio e outros materiais que compõem os veículos se transformam em lixo a cada ano, sem legislação específica que regule o descarte e a reciclagem.
Os dados de embarcações abandonadas são guardados nas 63 capitanias dos portos, das delegacias e das agências subordinadas à Marinha em território nacional. Números exclusivos obtidos pelo Correio revelam que a Armada abriu 193 notificações envolvendo barcos e navios abandonados de forma irregular entre 2012 e 2014. É impossível, entretanto, determinar o tamanho e os tipos de embarcações.
Nos casos de abandono da embarcação sem qualquer informe às capitanias dos portos, os proprietários são notificados para, em seguida, ser iniciado o processo de ;perdimento do bem; pela Marinha. Os dados sobre tais barcos e navios e os processos envolvendo o descarte voluntário ; com potencial de riscos à navegação e de poluição do meio ambiente ; são mínimos, porém. As embarcações deveriam ser encaminhadas para reaproveitamento em estaleiros ou para a reciclagem em metalúrgicas.
Segundo a Marinha, existem atualmente 43 processos de ;perdimento de bens;. A frota registrada no Brasil, entretanto, chega a 821.216 embarcações, no Sistema de Gerenciamento de Embarcações (Sisgemb). No 7; Distrito Naval, composto por Tocantins, Goiás e Distrito Federal, estão catalogados quase 63 mil barcos, entre lanchas e veleiros (leia quadro).
Petroleiro
O navio petroleiro Mara Hope, de mais de 120 metros de comprimento, naufragou em Fortaleza há 30 anos, em março de 1985. Desde então, a carcaça da embarcação está a menos de 500m da Praia de Iracema, um dos cartões-postais do Ceará. Fabricado na Espanha na década de 1960, o Mara Hope sofreu um incêndio no Texas (EUA), em 1983. Condenado ao desmonte, recebeu como destino, um ano depois, uma última viagem para Taiwan.
Quando navegava pelo litoral brasileiro em direção ao Cabo Horn, na África do Sul, o navio que rebocava o Mara Hope enfrentou problemas mecânicos e ancorou em Fortaleza. Tempos depois, o rebocador largou o petroleiro à deriva, que, por fim, encalhou em Iracema. ;Cresci vendo aquele navio enferrujado;, disse o artista Narcélio Grud, 38 anos, que, no último 26 de julho, coloriu o Mara Hope.
Depois de uma visita de reconhecimento para a instalação, Narcélio pintou a estrutura da embarcação com 300l de tinta. ;Existe uma mística, como se o navio fizesse parte do patrimônio histórico do estado, mas é lixo;, afirmou Narcélio. Uma das versões do encalhe é a de que o rebocador norte-americano teria abandonado o petroleiro de propósito no litoral brasileiro.
Empurra
A Política Nacional de Resíduos Sólidos, sancionada há cinco anos, esqueceu de estabelecer normas para dar fim às carcaças, sem que donos ou fabricantes sejam autuados ou mesmo recebam punições. O Ministério do Meio Ambiente admite e lamenta a falta de regras específicas para o descarte de barcos e outros veículos. E dá início a um jogo de empurra.
A Lei n; 7.542/86 aponta que a Marinha é responsável pela fiscalização da remoção e demolição de ;coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional;. Mas os próprios militares dizem que tal responsabilidade ;não inibe a atuação de outros órgãos com competências conexas sobre a questão;, resume a Marinha, em nota.
Em Brasília, próximo à Ponte das Garças, no Lago Sul, um barco de aço e madeira de mais de 10m está abandonado há pelo menos 5 anos. A embarcação se transformou em abrigo para usuários de crack. O Correio pediu informações sobre o barco à assessoria do 7; Distrito Naval, mas não obteve resposta até o fechamento da edição. Barcos nem sempre recebem as homenagens devidas ao fim das navegações.
Aproveitamento em naufrágios artificiais
Na capital pernambucana, velhos barcos ganham nova utilidade ao fim da vida. Levados ao mar pela última, são afundados para se transformar em recifes artificiais, servindo de abrigos para peixes e diversão para mergulhadores amadores. Hoje, existem 11 naufrágios provocados, a partir de uma parceria entre a pesquisadores de universidades, grupos de mergulhadores, uma empresa de rebocadores, Companhia Pernambucana de Recursos Hídricos (CPRH), Marinha e Ibama.
As primeiras operações de afundamento começaram em 2001. ;Depois de amplos estudos de rotas e afundamento, limpeza e desmonte de equipamentos como o motor, o barco é levado para o mar e abrimos as válvulas para entrada da água. Eles afundam rapidamente;, diz Gabriel Katter, 40 anos, instrutor e dono de uma operadora de mergulho. Ao submergirem, os rebocadores desenvolvem vida marinha e pequenas florestas aquáticas, atraindo tubarões-lixa, moreias e arraias.
Até o fim deste ano, mais rebocadores devem ser afundados a partir de parceria entre o governo de Pernambuco e a operadora de mergulho Aquáticos, além de pesquisadores e uma empresa dona dos rebocadores em desuso.