Brasil

Policiais responsáveis pelas mortes de agricultores no Pará não são punidos

Impunidade no campo é rotina, dizem especialistas

Natália Lambert
postado em 14/04/2016 06:00


Há 20 anos, Raimundo Gouveia, 61 anos, duvidou que as balas que os policiais militares atiravam contra ele e a família fossem de verdade. Até que viu o companheiro de luta Lourival cair de bruços com um tiro no peito. Ao virá-lo, percebeu o sangue escorrendo pela boca. Raimundo segurou a mulher e os dois filhos pelos braços e correu pelo mato à beira da PA-150, na Curva do S, a 5km de Eldorado dos Carajás (PA). ;Escutava lá do mato eles atirando e xingando todo mundo de vagabundo. Chegaram, atiraram e foram embora, deixando um monte de gente morta jogada na estrada. Só voltei no dia seguinte para enterrar os mortos.;

A lembrança do massacre que deixou 19 sem-terra mortos e 79 feridos, em 17 de abril de 1996, é dolorosa para Raimundo. ;A gente só fala dessa dor para que os companheiros não sejam esquecidos. Mas todo ano é muito difícil.; Pai de seis filhos e dono, hoje, de um pedaço de terra, Raimundo é presidente da associação do Assentamento 17 de abril. Criado em 1997, o local abriga 690 famílias ; grande parte delas enfrentou o trauma do maior conflito da história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Depois do episódio, foram desapropriados 18 mil hectares da Fazenda Macaxeira pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e destinados à reforma agrária.

Pior que a dor da lembrança para Raimundo é pensar que a maioria dos responsáveis pelo massacre não pagou pelo que fez. De todos os envolvidos, inclusive as autoridades que teriam ordenado o ataque, somente o coronel Mário Colares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira foram condenados. A demora na investigação, na tramitação dos processos e na punição dos culpados fez com que o Estado Brasileiro fosse denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

De acordo com José Batista Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a impunidade é rotina nos casos de violência no campo. Levantamento da CPT com números do banco de dados da Ouvidoria Agrária Nacional, mostra que 1.773 pessoas foram assassinadas no Brasil em decorrência de 1.338 conflitos agrários entre 1985 e 2015. De todos os casos, somente 109 chegaram a ser julgados, condenando 32 mandantes e 88 executores.

No Pará, historicamente o estado com mais registros de execuções, em quatro décadas ; de 1980 a 2014 ;, 846 pessoas foram executadas. Do total, 293 mortes resultaram em inquérito ou ação penal. Ou seja, 65,36% sequer foram investigados. Desses 293, apenas 62 foram concluídos e algum dos responsáveis foi levado a julgamento no tribunal do júri. ;O que prevalece nessa região de fronteira da Amazônia com o agronegócio é o descaso do poder público em investigar as mortes e punir os responsáveis pelos crimes;, afirma Batista.

Violência


Mesmo diante de tantos casos de execução no campo, Raimundo Gouveia destaca que a situação não mudou nos últimos 20 anos. ;Os conflitos acontecem por dois motivos. Por causa da impunidade e porque os fazendeiros nunca vão se conformar que o pobre tem que ter direitos e a terra tem que ser dividida por todos, principalmente a terra que não tem função social.;

De acordo com o especialista em reforma agrária, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (USP) Adalmir Leonídio, a impunidade é motivadora, mas o componente de fundo da violência no campo é a desigualdade de acesso à terra no país. ;O Judiciário tem simpatia pelos proprietários, até por causa da desculpa de que a lei está do lado da propriedade. A seletividade penal no Brasil é generalizada e está diretamente relacionada à posição do réu (...) As ocupações são as armas que os sem-terra têm para pressionar. Cabe ao Estado fazer a reforma agrária e ser protagônico.;

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