postado em 31/07/2016 08:38
Há vida após o terror e a prova viva disso se chama Maria da Penha Maia Fernandes, 71 anos. A personagem que deu nome à lei que defende as mulheres vítimas de violência, sobreviveu ao calvário e usa o drama do passado como alerta. O Correio/Aqui DF ouviu, após uma década, a idealizadora da norma. Apesar dos avanços, vários dilemas precisam ser sanados. E algumas ações, de tão extremas, levam a crer que ainda há muito a se evoluir. ;A lei não quer punir o homem, mas punir o homem agressor, que é aquele que não sabe tratar a sua mulher como pessoa humana e se acha seu dono. Existem vários tipos de violência e, às vezes, mulher acha que só a física tem que ser denunciada;, reflete.Na época em que você sofreu violência doméstica, ainda não existia a lei que foi batizada com seu nome, como foi o processo de judicialização do caso?
Aconteceu em 1983, então não tinha nem Delegacia da Mulher, pois a primeira foi criada dois anos depois, em São Paulo. Era um época em que muitas mulheres eram assassinadas ao tentarem se separar dos maridos e eu tinha medo, temia pela minha vida, então continuei na violência. Às vezes eu sugeria, muito de leve, que a gente se separasse, mas ele nunca aceitou. Então, ele forjou um assalto e, na versão dele, levei um tiro nas costas enquanto ele lutava com quatro assaltantes que entraram na minha casa. Eu fui vitimizada dormindo. Nesse dia, eu fui acolhida pelos vizinhos, que me levaram para o hospital. Passei quatro meses lá, devido à gravidade da lesão e, quando eu voltei para casa, ele me manteve por 15 dias em cárcere privado. Durante esse tempo, ele atentou contra a minha vida outra vez, enquanto eu tomava banho num chuveiro com fio desencapado: ele tentou me eletrocutar. Daí, minha família viu o que eu estava passando. Eles conseguiram com um juiz um documento de separação de corpos para que eu pudesse sair de casa sem perder a guarda da minha filha. Quando o delegado chamou o meu ex-marido para depor novamente, ele entrou em total contradição com o primeiro depoimento, porque ele já não lembrava do que tinha dito e, a partir daí, ele foi considerado o autor das tentativas de homicídio.
O fato de ele ser o pai das suas filhas interferiu no processo de separação e criminalização da violência doméstica? Você teve contato com ele depois do início do processo?
Não, de jeito nenhum. Ele também as maltratava, então as minhas filhas nunca tiveram um momento de saudade. Muito pelo contrário, elas se sentiram muito apoiadas pela minha família. Para elas, foi um alívio também. Nós nem mantivemos contato com ele. Durante o período do inquérito, em que ele tinha que vir para as audiências, resolveu se mudar para o Rio Grande do Norte e ele só aparecia em Fortaleza para as audiências. Depois que ele foi preso e cumpriu a pena de dois anos em regime fechado, eu não tenho mais notícias de onde ele se encontra.
Você tinha noção do que estava vivendo quando era agredida?
Não, não de violência doméstica. Nem existia esse termo. O que se falava nas rodas de amigas era que a mulher tinha um marido que era muito bom, mas que quando bebia batia. Sempre se dava a entender que era uma coisa normal. E que a mulher que se separava era uma mulher desquitada, malfalada, que se sujeita a ;algumas situações erradas;. A mulher tinha que viver junto com o marido e tinha a ideia machista de que dependia dela a harmonia no lar. Então não importava o que acontecesse, ela tinha que aguentar e por isso os homens faziam das mulheres o que eles quisessem.
Antes do sucesso do livro Sobrevivi, você tinha espaço na mídia para denunciar seu sofrimento e essas falhas do poder público?
Depois de uns três ou quatro anos do término do processo, foi criado o Conselho Cearense do Direito das Mulheres e eu comecei a fazer parte, a participar dos eventos e caminhadas e foi a partir disso que fui me tornando conhecida. Então, eu já era conhecida pelo trabalho do conselho e, depois que o livro foi lançado, eu me tornei de uma vez por todas conhecida, por causa da assessoria na divulgação do livro e pelo fato de as mulheres ficarem mais conscientes e começarem a conhecer mais, participar mais desses dias comemorativos, como o 8 de março.
Você se considera feminista?
Se feminismo é isso que eu estou fazendo, eu sou feminista. Porque há mais de 10 anos eu estou conscientizando as pessoas da importância da lei na vida das mulheres e da sociedade.
[SAIBAMAIS]
Para você, quais os maiores trunfos da Lei Maria da Penha?
O entendimento de que violência doméstica é um crime. A Lei Maria da Penha não quer punir o homem, mas punir o homem agressor, que é aquele que não sabe tratar a sua mulher como pessoa humana e se acha seu dono. Existem vários tipos de violência e, às vezes, mulher acha que só a física tem que ser denunciada. A lei esclareceu a violência sexual, a psicológica, a patrimonial. Havia uma ignorância muito grande sobre isso, mas, à medida que fui conversando com as mulheres feministas dos movimentos sociais, fui me apropriando dos termos e da importância de a gente divulgar essa pauta.