Brasil

Mexeu com todos

Ana Dubeux
postado em 09/04/2017 10:48

Fosse algum tempo atrás, o assédio do ator global contra uma figurinista cairia numa vala de omissão, cavada durante longos e turvos (para as mulheres) anos. Onde reina o machismo, reina também conivência, aceitação, resignação, silêncio, violência e dor profunda. Não há uma coisa sem outras. Não sobrevive uma cultura sem os sentimentos que dela derivam. E não há nada de bom que venha da opressão. Em nome do sabor da posse, os homens se refestelaram durante anos a fio. Deram à mulher a comida que o diabo amassou e serviram a si próprios um banquete indigno: os corpos femininos. A elas, e não a todas, restou a consciência de serem seres de domínio próprio, um naco de lucidez e autoestima que, nos tempos modernos, se converteu num manifesto, numa palavra: ;Basta;.

Foram as jovens feministas que escancararam a revolta, que transformaram dor em limite, que convidaram umas às outras para deixar a vala mais rasa, e os argumentos antes usados para justificar o machismo foram perdendo sentido, um a um. Só deu resultado quando elas entenderam que, nesse caso, uma só andorinha não teria liberdade de voo. Foi preciso união. Sororidade e empatia, para usar palavras da moda, que mostram exatamente o segredo de um avanço bem-sucedido contra o machismo: colocar-se no lugar da outra; achar que, sim, é problema seu também a sua vizinha apanhar; saber que, enquanto houver uma mulher vítima, todas estão em risco. Tudo isso bem traduzido na campanha das globais: ;Mexeu com uma; mexeu com todas;. Na verdade, mexeu com todos, porque a dor dela significou a dor de muitas, a dor de José Mayer, a dor de uma sociedade. Espero que mexa muito mais.

Expor os homens, antes tão protegidos por suas convicções, por sua criação, por sua superioridade de macho tão inquestionável, tornou-se uma estratégia. Alguns sentem pena dos homens, lançados ao julgamento da opinião pública e julgados à revelia. Afinal, eles não têm culpa da educação que tiveram, dizem. É verdade, mas então vejamos também a publicidade do caso como educativa. Sinto por ele?! Desculpe, mas não. Sinto pela moça que ele assediou, pela mulher dele, pela filha dele e pela minha, que não teve a sorte de já nascer num mundo menos machista. Quem sabe minha netinha não precise passar por isso.

Jogar o caso na rede que tudo faz e tudo pode não se trata de uma vingancinha docemente arquitetada. Trata-se da certeza da reparação, porque o silêncio é cúmplice da opressão. Seria mais um caso a ser jogado na vala comum. Não estamos mais em um jogo de erros e acertos em que homens são perdoados pelos seus erros e as mulheres, punidas por seus acertos. Estamos no tempo de resgatar uma verdade. Eis: os homens oprimiram mulheres dia a dia, mês a mês, década a década, século a século; não farão mais. Não as xingarão de putas e vadias; não tocarão seus corpos sem consentimento; não serão violentos; não ameaçarão. E, se o fizerem, não sofrerão apenas as consequências legais, mas também as morais. Simples assim.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação