Brasil

Delações mostram que corrupção emperra desenvolvimento do setor ferroviário

Depoimentos de ex-diretores da Odebrecht revelam esquema de fraude em licitações e propinas a políticos na empresa responsável por administrar as linhas no Brasil

Natália Lambert
postado em 15/04/2017 08:00

Inaugurado em 2012 pela então presidente Dilma Rousseff, trecho entre Anápolis e Goiânia não está operando porque ainda não foi cedida a concessão

Além do esquema de pagamento de propinas para campanhas eleitorais e de negociatas no Congresso, a abertura do sigilo das delações de ex-diretores da Odebrecht, determinada pelo ministro relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, descortinou um dos principais motivos de o desenvolvimento do setor ferroviário no país estar emperrado: a corrupção também está incrustada nos trilhos. Conforme mostrou o Correio em série de reportagens no início deste mês, o Brasil acumula um deficit de 850km de trilhos para atender à demanda de passageiros por trens e metrôs nas grandes cidades e regiões metropolitanas.


De acordo com colaboradores da empreiteira, no início da década de 2000, obras ferroviárias no país eram distribuídas entre empresas por meio de um acordo de mercado com a Valec ; Engenharia, Construções e Ferrovias S.A., empresa pública, vinculada ao Ministério dos Transportes, que assumiu o setor depois da extinção da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). Segundo denúncias, os lotes eram divididos e as licitações, ajustadas para contemplar os envolvidos. Há suspeitas de irregularidades nos contratos da construção de trechos das ferrovias Norte-Sul, de Integração Oeste-Leste e em projetos do mesmo modal, como a Linha 4 do Metrô de São Paulo.

Em acordo de colaboração premiada, os ex-diretores da Odebrecht Pedro Augusto Carneiro Leão Neto e João Antônio Pacífico Ferreira explicam como era o organizado o acordo de mercado e denunciam esquema de pagamento de propinas a políticos. Em vídeo, Pacífico explica que, em 2004, foi divulgado um grande projeto de retomada de investimentos dos programas ferroviários. ;O Brasil tinha, naquela época, menos quilômetros de ferrovias do que tinha há cinquenta anos. Por quê? Porque ninguém investia;, comenta. Segundo ele, Pedro Leão foi designado para intermediar o acordo na Valec.

Em depoimento, Leão conta que participou de uma reunião na sede da Valec, com o então presidente da companhia, José Francisco das Neves, o ;Juquinha;, na qual teria sido informado do acerto entre 20 empresas para a divisão dos lotes licitados. Após tratativas, antes mesmo de aberta a concorrência, a construtora já sabia que seria contemplada com os lotes 6, 9 e 10 da Norte-Sul. A combinação, inclusive, foi denunciada pelo Ministério Público Federal no Tocantins, em 2013, que propôs ação penal contra Juquinha e mais quatro funcionários da Valec. As ações estão judicializadas nas operações Trem Pagador e Trem Recebedor.

Para o presidente da Frente pela Volta das Ferrovias (Ferrofrente), José Manoel Vieira Gonçalves, a questão da corrupção no país é generalizada, mas a situação fica mais agravada no setor das ferrovias porque são obras de alto investimento. ;Obra em ferrovia não é para uma eleição, é para gerações futuras. Infelizmente, a lógica tem sido imediatista, de sobrevivência eleitoral. As obras muitas vezes são realizadas na ficção, não sai do papel. Taí a Norte-Sul, por exemplo, no trecho de Anapolis a Goiania, inaugurado pela ex-presidente Dilma. Até hoje não funcionou porque não fizeram a concessão. Fizeram a ferrovia, foi um investimento alto e dinheiro jogado fora. Tem capim subindo no trilho.;


Fatia política

Os ex-executivos da empreiteira contam que, após o início das obras, Leão foi chamado na sala de Juquinha para ser informado de que ;era praxe; na Valec que uma parte dos contratos fosse para o PR (então PL) e outra para o PMDB-MA. Segundo eles, a exigência era de 4% sobre o valor do contrato (R$ 110 milhões), sendo que, 3% seriam destinados ao grupo de Valdemar da Costa Neto e 1%, ao grupo de José Sarney. Juquinha receberia em nome do primeiro e o ex-diretor de Engenharia da estatal Ulisses Assad intermediaria a propina para o segundo.

;Disse que não aceitaria, tendo sido orientado a procurar o então deputado Valdemar da Costa Neto. Me reuni com ele no gabinete da liderança do PL (PR), quando o deputado reiterou a solicitação feita por José Francisco. Na ocasião, afirmei que a construtora não aceitaria realizar o pagamento relativo à propina. O deputado, então, ameaçou promover retaliações durante a execução do contrato, dizendo que tinha controle sobre a Valec, bem como que iria ;acabar com o nosso contrato; caso não pagássemos;, conta Leão. Diante de um nova negativa, dias depois, o delator teria sido procurado pelo deputado federal Milton Monti (PR-SP) para reforçar o pedido e a ameaça.

;Aí começou a ter uma série de retaliações: admissões que atrasaram, aditivos não assinados, programações financeiras que não eram enviadas no prazo. Então, autorizei o pagamento para evitar mais prejuízos;, afirma João Pacífico. De acordo com o depoimento dos delatores, entre 2007 e 2008, os pagamentos para o PR chegaram a R$ 4,3 milhões e para o grupo de Sarney, R$ 660 mil. Fachin autorizou a investigação de Monti sob suspeita de corrupção passiva, ativa e lavagem de dinheiro. Por meio de nota, o parlamentar afirma que sempre agiu de acordo com a lei: ;É bom que se apure, porque assim a inocência dele será comprovada;.

Apesar de não terem foro privilegiado, o ministro decidiu por manter a investigação sobre Sarney e Costa Neto no bojo do STF para facilitar o cruzamento de informações. Segundo a assessoria de Sarney, o inquérito não cita o ex-presidente, e sim uma pessoa que dizia ser ligada a ele. O PR alega que não comentará assuntos que serão objeto de apreciação jurídica. Já a Valec, destaca que as denúncias tratam de gestões anteriores e que a atual diretoria instituiu internamente uma comissão especial apuratória para acompanhar essas questões e reafirmou o compromisso com a probidade.

Investigada

Delações premiadas da empreiteira Camargo Correa já tinham colocado a Valec na corrupção da Lava-Jato. Em fevereiro de 2016, o então presidente José Francisco das Neves foi alvo de condução coercitiva e, em maio, a Procuradoria da República em Goiás denunciou Neves e outros funcionários por corrupção, lavagem de dinheiro, cartel e fraude à licitação nas obras da Norte-Sul e da Oeste-Leste. Em junho do ano passado, novamente a Valec foi alvo de investigações da Polícia Federal. Só em Goiás, a PF apurou mais de R$ 630 milhões de recursos desviados das obras. Segundo o Ministério Público Federal,
Juquinha recebeu mais de R$ 2,24 milhões em propinas.

Modal abandonado


O país tem hoje 28,54 mil quilômetros de trilhos de trens, divididos em 14 principais ferrovias, nas quais circulam basicamente cargas. Entenda um pouco do histórico de investimentos:

; A primeira ferrovia foi construída em 1854, por Dom Pedro II. Em 1922, o país tinha cerca de 29 mil quilômetros de trilhos. Passados 30 anos, o número somava 37 mil km. Em 1994, a maioria dos trilhos estava abandonada e a quantia caiu para 12 mil km.

; Por quase 70 anos, o investimento foi mínimo, até 2004, quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou um programa de revitalização das ferrovias, que foi incrementado, em 2007, com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Uma análise do PAC, entre 2007 e 2015, mostra que somente 11,5% da previsão inicial de R$ 51,8 bilhões ; ou seja, R$ 5,9 milhões ; foram investidos no setor.

; Empresa pública, vinculada ao Ministério dos Transportes, a Valec ; Engenharia, Construções e Ferrovias S.A é responsável por construir e explorar ferrovias. Entre as funções determinadas em lei, entre outras, está a de coordenar, executar, controlar, revisar, fiscalizar e administrar obras de infraestrutura ferroviária e celebrar contratos e convênios.

; Atualmente, a Valec tem a concessão das ferrovias Norte-Sul, da Integração Oeste-Leste e do projeto da Transcontinental. O capital social da empresa é de R$ 8,2 bilhões e pertence integralmente à União.

Fontes: ONG Contas Abertas, Associação Nacional dos Transportes Ferroviários (ANTF),

Ministério dos Transportes e Valec

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação