Brasil

Mais de 160 mil pessoas trabalham em condições degradantes e sub-humanas

No mundo, ainda existem 45 milhões de escravos, 18 milhões apenas na Índia

postado em 01/05/2017 07:00
No mundo, ainda existem 45 milhões de escravos, 18 milhões apenas na Índia

Séculos após o Brasil receber os primeiros escravos vindos de países africanos, essa prática condenada em diversas nações, continua se perpetuando no mercado de trabalho. No entanto, com a evolução tecnológica, da legislação e da fiscalização, o trabalho escravo sofreu uma metamorfose e agora ocorre de forma disfarçada. Mesmo diante da lição histórica de que seres humanos não são donos de outros seres humanos, somente no Brasil, 167 mil pessoas são submetidas a condições degradantes e sub-humanas. Além de serem obrigadas a trabalhar em troca de pífias remunerações ou simplesmente para pagarem dívidas contraídas com o patrão. No mundo, esse número, é ainda mais assustador. De acordo com dados da ONG Walk Free Foundation, 45 milhões de pessoas são escravizadas nos cinco continentes. Somente na Índia, esse número chega a 18 milhões.

Há pouco mais de três anos, a vida do lavrador Nerisvan da Silva, de 35 anos, mudou completamente. Ao sair de casa, na cidade de Ouricuri, em Pernambuco, para trabalhar no interior de Tocatins, Nerisvan não imaginava que estava caindo em uma armadilha. Ele passaria os próximos meses escravizado, em uma fazenda, de difícil acesso e longe da área urbana. Mesmo sem estar preso a correntes - imagem que a maioria das pessoas tem de pessoas em situação de escravidão - Nerisvan não conseguia sair do local, pois era vigiado 24 horas por capangas contratados pelo dono da fazenda.

Durante mais de 12 horas por dia, o trabalhador era obrigado a trabalhar na lavoura, cortando cana de açúcar, colhendo soja e derrubando a mata para novos plantios. Enquanto Nerisvan estava na colheita, venenos para combater pragas eram jogados sobre as plantações. Mas este veneno não afetou apenas organismos nocivos às plantações. O lavrador foi contaminado com o agrotóxico, que ficará em seu organismo para sempre. Atualmente ele está aposentado pelo INSS, por conta da contaminação. ;Eu fui parar lá com meu irmão mais velho. Nos obrigavam a passar o dia todo derrubando a mata. Eu tentei fugir duas vezes, pelo mato, mas conseguiram me pegar. Quando a gente ficava doente eles não levavam no hospital, pois sabiam que iríamos pedir ajuda. Eles não pagavam o salário todo mês. Teve uma vez que fiquei quatro meses sem receber salário. Eu fiz uma cirurgia recentemente e estou doente até hoje. Eu quero que eles paguem pelo que fizeram comigo e com os outros;, conta o trabalhador.

O dono da fazenda onde Nerisvan foi escravizado foi condenado a pagar R$ 10 mil de multa, mas permanece em liberdade. O advogado do trabalhador entendeu que o valor não compensa os danos sofridos, pois seu cliente não poderá mais trabalhar. A defesa de Neurivan pretende recorrer da sentença e pedir uma indenização maior, para que ele possa arcar com o tratamento. Apesar desta vítima ter se livrado do trabalho escravo, após uma operação da Polícia Federal e de auditores fiscais do trabalho, mais de 150 mil pessoas permanecem em situação parecida no país. Os casos ocorrem com maior incidência na região Norte. Mas são comuns também nas demais regiões e em grandes centros urbanos. Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília registram casos de trabalhos análogos a escravidão todos os anos.

O Frei Xavier Plassat, integrante da Comissão Pastoral da Terra, trabalha no combate ao trabalho escravo contemporâneo, ressalta que os séculos passaram e o trabalho escravo passou a ocorrer de forma disfarçada. ;Ainda se tem uma imagem da escravidão antiga, clássica, imperial, de que o escravo estava acorrentado, em que necessariamente se impedia o direito de ir e vir das pessoas. Mas muitos historiadores ensinam que isso não é bem verdade. Em todos os tempos a escravidão teve como características o fato de tratar o ser humanos como uma coisa. No Brasil houve períodos em que escravos andavam livremente no meio do povo. Mas eram escravos;, destaca o Frei.

Xavier ressalta que o Brasil avançou na legislação contra esse tipo de crime. Mas para que a situação se resolva, muito ainda precisa ser feito. ;Desde 2003, o Brasil incorporou no Código Penal a determinação de que o trabalho escravo pode ser caracterizados pelas condições degradantes ou por uma jornada exaustiva. Pode ser pela obrigação de pagar dívidas que são obrigações do empregador. Um exemplo é quando o trabalhador está no meio da Amazônia, cortando madeira. O funcionário não tem como opção fazer outro serviço e ainda é ameaçado pelo madeireiro. Com um tempo, esses empregadores escravocratas aprenderam a esconder e maquiar esse tipo de degradação do ser humano;, afirma o ativista.

Equipes do Ministério do Trabalho, formadas por auditores fiscais do trabalho e policiais federais atuam na libertação de trabalhadores nestes tipos de condições. Mas de acordo com o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) atualmente apenas quatro equipes atuam no Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que faz esse tipo de resgate. Em 2009 este grupo contava com nove equipes. Ao todo, são 2.400 auditores fiscais do trabalho para atuar em todo o território nacional, para todas as situações que envolvem violações trabalhistas, como quantidade de horas trabalhadas e casos de insalubridade no local de trabalho.

O presidente do Sinait, Carlos Silva, relata que as condições precárias das equipes dificultam o trabalho de resgate de trabalhadores em situação análoga à de escravidão. ;Os auditores, além de estarem em um número pequeno, não contam com equipamentos de qualidade e boas condições de segurança para realizarem seu trabalho. Atualmente não temos celulares via satélite, que permitam a comunicação na hora das ações. Na região Norte e Nordeste os celulares não pegam em todas as regiões. Em maio do ano passado, quando os auditores se aproximaram de uma fazenda no Pará, os fazendeiros retiraram os trabalhadores do local e ainda atiraram contra as equipes. Os carros dos auditores foram alvejados;, afirma o sindicalista.


Maior resgate em oito anos


Equipes do Ministério do Trabalho resgataram 31 pessoas em situação de trabalho análoga à escravidão em uma fábrica de uma multinacional chinesa na cidade de Nova Maringá, no Mato Grosso, entre 11 de março e 05 de abril deste ano. Este foi o maior resgate de trabalhadores nesta situação desde 2009. As pessoas resgatadas trabalhavam sob ameaças, em situação precária e com salários abaixo do combinado.

Um sindicato colaborava com a exploração dos trabalhadores e havia feito um acordo ilegal, que não previa escala de trabalho e a possibilidade de se atuar em outra empresa. ;Ele não funciona como sindicato, funciona como um grupo de camaradas que se juntaram para ;alugar trabalhador;, vender mão de obra e ganhar dinheiro em cima disso;, afirma o auditor-fiscal Luis Alexandre de Faria, que coordenou a ação.


Os escravos modernos em pleno século 21


No Brasil

; Ao longo dos séculos, as práticas de trabalho escravo sofreram mudanças. No Brasil, o trabalho escravo é tipificado pelo artigo 149 do Código Penal.

; De 1995 a 2015, um total de 49.816 pessoas foram libertas do trabalho escravo no Brasil.

; A situação mais grave é no estado do Pará, onde, nesse período, foram libertos 12.799 trabalhadores escravos.

; O estado do Mato Grosso registrou a liberação de 5.997 pessoas em situação de escravos.

; Minas Gerais aparece em terceiro lugar, com 4.543 liberações.

No mundo

; Atualmente, o mundo tem 48,8 milhões de pessoas submetidas a trabalho escravo.

; A Índia tem a maior quantidade de trabalhadores nessas condições, chegando a escravizar 18,4 milhões de pessoas.

; A Coreia do Norte tem a maior porcentagem de escravos entre a população. O país tem 1,1 milhão de escravos, o que representa 4,4% da população.

; O Brasil tem, em média, 167 mil pessoas submetidas a condições análogas à escravidão.

Formas de escravidão

; Trabalho forçado: o indivíduo é obrigado a se submeter a condições de trabalho em que é explorado, sem possibilidade de deixar o local em que está, seja por causa de dívidas, seja por ameaça e violências física ou psicológica.

; Jornada exaustiva: expediente desgastante que vai além de horas extras e coloca em risco a integridade física do trabalhador, já que o intervalo entre as jornadas é insuficiente para a reposição de energia. Há casos em que o descanso semanal não é respeitado. Assim, o trabalhador também fica impedido de manter vida social e familiar.

; Servidão por dívida: fabricação de dívidas ilegais referentes a gastos com transporte, alimentação, aluguel e ferramentas de trabalho. Esses itens são cobrados de forma abusiva e descontados do
salário do trabalhador, que permanece cerceado por uma dívida fraudulenta.

; Condições degradantes: um conjunto de elementos irregulares que caracterizam a precariedade do trabalho e das condições de vida às quais o trabalhador é submetido, atentando contra a sua dignidade.

Como funciona, na prática

; Jornadas que ultrapassam em muito o limite legal de horas diárias

; A pessoa é obrigada a trabalhar, coagida e deslocada do seu ambiente habitual

; Humilhação durante o trabalho

; Restrição da locomoção com base em dívidas

; Impedimento do uso de meios de transporte pelos trabalhadores, a fim de retê-los no trabalho

; Mantém-se vigilância ostensiva no local de trabalho

; Apodera-se de documentos ou objetos pessoais da vítima

; Péssima alimentação

; Ausência de saneamento básico e acesso à água potável no local de trabalho

Fonte: Repórter Brasil, ONG Walk Free Foundation e Lei 2.848



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